A voz do pastor – Setembro

Publicado em 04/09/2012 | Categoria: Destaques Editorial |


Eis-me aqui, envia a mim

 

Amados irmãos e irmãs, o mês de setembro é dedicado à Bíblia. Neste mês, abraçamos uma oportunidade renovada, rica e especial para cultivar e alimentar uma verdadeira espiritualidade bíblica. Esta espiritualidade deve estar fundamentada na Palavra de Deus. E a Igreja do Brasil, com o tema: Discípulos Missionários a partir do Evangelho de Marcos e o lema: Coragem, levanta-te! O Senhor te chama!, convida-nos ao aprofundamento do Evangelho de São Marcos.

Quero falar de um personagem bíblico importante chamado Isaías. Ele é o mais popular de todos os profetas. Mas é o menos conhecido. Basta lembrar que, de tudo o que não se sabe dele, a primeira coisa é que os 66 capítulos do livro de Isaías não são todos dele. Na verdade, mais da metade do livro foi escrito por profetas anônimos. Quando lemos o Livro de Isaías, estamos lendo uma coletânea de oráculos proféticos de épocas bem diferentes, gente completamente desconhecida, que só chegou até nós porque alguém compilou todos os textos por volta do ano 400 AC. E a voz de quem não tem voz, o nome dos anônimos, a palavra dos esquecidos chegou até nós e grita, ainda hoje, com força e vontade, cada vez que abrimos o texto sagrado e, ao mesmo tempo, o coração.

Mas o que falaram Isaías e os outros profetas que se esconderam atrás do seu nome? Falaram muito das condições sociais e políticas em que se encontravam Judá e Samaria. É que eles não andavam contentes com o rumo das coisas. Sobretudo nos primeiros 39 capítulos, Isaías brada um julgamento que se iria abater sobre o país, porque havia problemas internos demais, e havia uma elite que se recusava a encarar estes problemas. Todo mundo comprava e vendia e fazia de conta que tudo ia bem. Mas não ia.

Só que a queixa de Isaías não tem tom político ou social. Na verdade, ele se queixa de que o povo tenha esquecido tão facilmente a aliança com Deus. É como se ele se lamentasse da memória curta que o povo tem! O Senhor? Ele, sim, é fiel. Seu amor continua como no primeiro dia. Mas Israel era incapaz de ver isso, revoltava-se contra ele, colocava Deus abaixo do boi e do jumento. “Ouvi, ó céus, prestai atenção, ó terra, porque o Senhor está falando: Criei filhos e fi-los crescer, mas eles se rebelaram contra mim. O boi conhece o seu dono, e o jumento, a manjedoura de seu senhor, mas Israel é incapaz de conhecer, o meu povo não consegue me entender” (Is 1,3).

Isaías fica pasmo. As pessoas continuam frequentando o Templo, sim. Mas para ele, isso não bastava. Encher o Templo com solenidade iníqua é um desvio perigoso (Is 1,10-20). Se quem vive levando oferendas para o Senhor é a mesma gente que não se importa em fazer o direito funcionar, que não faz justiça ao órfão e à viúva, então, tudo está de cabeça para baixo. “Que me importam os vossos inúmeros sacrifícios? Estou farto de holocaustos de carneiros e da gordura de bezerros, do sangue de touros e de cordeiros e de bodes. Nada disso me dá alegria, quando vindes à minha presença. Quem vos pediu que pisásseis os meus átrios? Basta de trazer-me oferendas vãs: elas são para mim um incenso abominável. Não posso suportar iniquidade e solenidade” (Is 1,11-13). E ele continua, mais contemporâneo que nunca: “Lavai-vos, purificai-vos! Tirai da minha vista as vossas más ações! Cessai de praticar o mal, aprendei a fazer o bem. Buscai o direito, corrigi o opressor. Fazei justiça ao órfão, defendei a causa da viúva” (Is 1,16-17). Irmãos, irmãs: vocês não enxergam nessas palavras nenhuma constrangedora atualidade?

Além de profeta, Isaías é poeta. O cântico da vinha (Is 5,1-7) é um poema lírico de beleza inconfundível, uma espécie de “canção de amor”. Deus é o agricultor e seu povo, uma vinha plantada com cuidado e carinho, mas que nada produziu. Isaías não cria expectativas falsas. Deus irá atuar. E quando Acaz, o rei, se recusa a pedir um sinal, o profeta lhe diz que o Senhor, por própria iniciativa, vai dar um sinal. Uma jovem mulher dará à luz um filho, e seu nome será Emanuel – Deus-conosco (Is 7,14). Queira Deus que essas palavras também aconteçam numa feliz atualidade!

Vocês devem estar pensando: Como terminou Isaías os seus dias, depois de 40 anos de atividade profética? Ora, ele terminou como terminam os profetas: angustiado por não ter sido ouvido. Ele viveu mais e viu mais do que todos os outros, mas ninguém quis ouvir o que ele viu. Ninguém quis viver da vida que ele conhecia. No século I DC, correu a lenda de que ele foi serrado ao meio. Verdade ou não, essa parece ser uma boa metáfora das angústias que dilaceram os verdadeiros profetas. Um trecho ficou conhecido como Testamento de Isaías: “Vai agora e escreve-o sobre uma prancheta, grava-o em um livro para que se conserve para dias futuros, para todo o sempre, porque este povo é rebelde, constituído de filhos que se recusam a ouvir a Lei do Senhor, e dizem a quem vê: Não queirais ver. E dizem aos profetas: Não tenhais visões que nos revelem o que é reto. Pelo contrário, dizei-nos coisas agradáveis, procurai ter visões ilusórias” (Is 30,8-17). Percebem como a mensagem de Isaías é contemporânea?

Antes de terminar, preciso voltar ao ponto central da nossa conversa: a queixa de Isaías não tem tom político ou social. Como o povo havia esquecido a aliança com Deus, é como se Isaías passasse o livro inteiro lembrando ao povo que o Senhor, Ele, sim, era fiel. Seu amor continua como no primeiro dia. E a resposta a esse amor fiel não podia ser outra. “Ouvi, então, a voz do Senhor que dizia: Quem é que vou enviar? Quem irá da nossa parte? Então eu respondi: Eis-me aqui, aqui estou: envia-me” (Is 6,8). Qual é a nossa resposta?

+ Dom José Francisco Rezende Dias

Arcebispo Metropolitano de Niterói



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