A presença de Deus nas obras de Dostoiévski.

Publicado em 02/03/2016 | Categoria: Notícias |


“No que diz respeito aos quatro principais romances de Dostoiévski — Crime e castigo (1866), O idiota (1869), Os demônios (1872) e Os irmãos Karamázov (1879) —, todos eles tratam da relação do ser humano com Deus”, destaca a professora.

Fiódor Dostoiévski
Imagem: livrosepessoas.com

Ao analisar as quatro obras fundamentais de Fiódor Dostoiévski, Crime e castigo (1866), O idiota (1869),Os demônios (1872) e Os irmãos Karamázov (1879), a professora de Literatura Russa da Universidade de São Paulo, Elena Vássina constata, em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line, que todas elas abordam a relação do homem com Deus.

Pode-se falar, inclusive, de uma intensificação da presença de Cristo na obra do autor russo a partir dos anos 1850, após sua experiência de comutação da pena de morte em trabalhos forçados na Sibéria.

Para personagens como Raskólnikov, de Crime e castigo, a punição se dá como “um processo interno, uma catástrofe espiritual e na necessidade de uma purificação interna, de contrição”, observa Vássina. Já em O Idiota, a figura paradoxal do Príncipe Míchkin, que metaforiza Cristo, é a “personificação do sentimento de ilimitada compaixão e de incondicional amor ao próximo”.

De acordo com a pesquisadora, “Dostoiévski sabe que não há como prevenir o desencadear catastrófico dos acontecimentos: apesar do amor ao próximo ser nutrido pelo Príncipe Míchkin com tanta abnegação, nem ele consegue impedir as forças do caos que, no final de contas, triunfam, levando a narrativa ao desfecho trágico”.

Elena Vássina é professora nos cursos de graduação e pós-graduação em Letras Russas na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo – USP. Aprendeu a falar português em Moscou, e o faz com fluência e um elegante sotaque, como na ocasião em que falou com a revista IHU On-Line em 2006, na edição intitulada Dostoiévski: nas profundezas da alma humana e da literatura.

É graduada e mestra em Letras pela Universidade Estatal de Moscou; doutora em Artes pelo Instituto Estatal de Pesquisa da Arte (Rússia), com a tese Principais tendências de desenvolvimento do teatro brasileiro dos anos 70; e pós-doutora também pelo Instituto Estatal de Pesquisa da Arte. É uma das organizadoras das obras Cadernos de Literatura e Cultura Russa (São Paulo: Ateliê Editorial, 2004); Tipologia do simbolismo nas culturas russa e ocidental (São Paulo: Humanitas, 2005); O cadáver vivo (São Paulo: Peixoto Neto, 2007); e Teatro russo: literatura e espetáculo (Cotia/São Paulo: Ateliê Editorial, 2011).

 

Confira a entrevista.

Foto: Youtube.com / UNIVESP

IHU On-Line – Em entrevista [1] concedida à IHU On-Line em 2006, a senhora afirmou que Dostoiévski [2] liga o Ser a Deus, e que toda sua obra projeta a eternidade. A partir disso, qual é o lugar de Deus na obra de Dostoiévski?

Elena Vássina – No que diz respeito aos quatro principais romances de Dostoiévski — Crime e castigo (1866), O idiota(1869), Os demônios (1872) e Os irmãos Karamázov (1879) —, todos eles tratam da relação do homem com Deus.

Raskólnikov, [3] de Crime e castigo, desce ao inferno dos sofrimentos de consciência para depois encontrar um caminho iluminado pelo amor ao próximo que o leva à ressurreição.

No romance O idiota, Dostoiévski tenta criar uma imagem do homem “absolutamente belo” como uma manifestação da beleza crística.

Em Os demônios, ao contrário, o escritor mostra a situação quando os homens se associam às forças demoníacas de destruição. E no romance Os irmãos Karamázov, no romance-síntese, Dostoiévski faz suas personagens e seus leitores refletirem sobre uma das questões cruciais de toda a sua obra: “se Deus não existe, tudo é permitido”.

Certamente, a fé de Dostoiévski passou pela prova de fogo quando, em 1849, ele foi preso e condenado à pena de morte por causa de sua participação no Círculo Petrashevski [4]. E o momento decisivo era quando o escritor estava esperando o momento da execução e sentiu que logo em seguida “estaria com Cristo”. No último minuto foi lida a ordem do czar Nikolau I, [5] que comutava a pena capital para prisão e exílio.

Logo depois de ter cumprido a pena de quatro anos de trabalhos forçados na Sibéria, no início de 1854, Dostoiévski escreve a carta à sua amiga e “correspondente espiritual” Natália Fonvízinam, confessando que, apesar de ser “um filho do século da falta de fé e de dúvidas”, ele compôs para si “o símbolo da fé no qual tudo está claro e sagrado.  Esse símbolo é muito simples:

 “acreditar que não há nada mais belo, mais profundo, mais simpático, mais racional, mais corajoso e perfeito do que Cristo, e não só não há, como eu ainda afirmo com um amor cioso que não pode haver. Além disso, se alguém provasse que Cristo está fora da verdade e se realmente a verdade estivesse fora de Cristo, eu gostaria mais de ficar com Cristo do que com a verdade.” [6]

 

Por isso, a presença de Cristo se torna tão importante na obra de Dostoiévski a partir da década dos anos 1850. Mas não se deve esquecer, como Dostoiévski anota já no final de sua vida, no seu caderno de 1881: “… não é como menino que eu creio em Cristo e o confesso, mas minha Hosana passou pelo crisol das dúvidas.” [7]

IHU On-Line – Em linhas gerais, como o sagrado e o Mal se expressam na literatura de Dostoiévski?

Elena Vássina – Por meio de suas personagens (Raskólnikov, Kiríllov [8], Verkhovénski [9], Ivan Karamázov [10]), personagens que sempre personificam as ideias, Dostoiévski analisa o mecanismo moral do nascimento do mal que abrange diferentes esferas da vida humana. Mas, ao mesmo tempo, no universo artístico do escritor, que é marcado pelas oposições polares, sempre existe a possibilidade de caminho que poderia levar à luz e ao amor divinos (Sônia Marmeládova [11], Príncipe Míchkin [12], Aliocha Karamázov [13], starets [14] Zózima).

Raskólnikov mata, derrama o sangue violando o mandamento “não matarás”, pondo em dúvida o caráter incondicional, absoluto do mandamento. Do ponto de vista da razão comum, ele matou uma pessoa e o castigo veio de fora. Mas no romance não existe castigo de fora. Rodion Raskólnikov poderia perfeitamente se livrar da responsabilidade pelo crime cometido e livrou-se de fato, porque no final de contas ninguém conseguiu provar sua conivência com o assassinato da velha agiota.

Mas Dostoiévski faz a sua personagem sentir toda a dimensão trágica do crime: “Não foi a velha que eu matei, eu matei a mim mesmo. Sim, acabei comigo para o fim dos séculos.” Resulta que o assassinato é um tiro no seu próprio corpo. O mandamento “não matarás” não é uma proteção mecânica, mas a profunda estrutura moral interna, dada ao ser humano. O castigo chega a Raskólnikov na forma de um processo interno, uma catástrofe espiritual e na necessidade de uma purificação interna, de contrição.

Dostoiévski ensina a responsabilidade pessoal. Ele não aceitava a justificativa comum de pessoas serem vítimas do meio. Pondo a culpa de nossos dramas e fracassos no mundo mal feito, abre-se mão voluntariamente do nosso dom principal — a liberdade.

IHU On-Line – Em específico, como a figura de Jesus aparece em suas obras, de forma direta ou figurada?

Elena Vássina – A figura de Jesus está presente em muitas obras de Dostoiévski: na maioria das vezes, é um intenso diálogo das personagens com os mandamentos de Cristo, as citações e referências ao Novo Testamento, mas, por exemplo, na Lenda do Grande Inquisidor (Os irmãos Karamázov) Jesus aparece como um interlocutor silencioso do Inquisidor. Já no romance O Idiota (em seguida, vou falar deste livro mais detalhadamente) encontramos o outro olhar paradoxal de Dostoiévski de Jesus: Ele aparece no quadro de Hans Holbein [15] “Cristo morto”, uma imagem tão impressionantemente forte que até faz o príncipe Míchkin confessar a Rogójin: “Por causa desse quadro outra pessoa ainda pode perder a fé.”

“Dostoiévski não seria um grande gênio se a sua obra não resultasse em uma fortíssima catarse que nos transforma e nos eleva à transcendência, ao deslumbramento pela luz Divina que ilumina as trevas da materialidade humana”

 

IHU On-Line – No caso do Príncipe Míchkin, protagonista de O Idiota, em que aspectos ele é uma metáfora de Jesus Cristo?

Elena Vássina – O romance O Idiota, de Dostoiévski, apresenta-se como um amplo campo artístico de intensa batalha entre duas forças polares: de um lado, estão os geradores de caos, representados pelas personagens atormentadas pelas paixões, quase sempre egocêntricas, e pelos desejos orgulhosos; do outro lado, a ação se movimenta pela força do amor que visa unir tudo e todos em harmonia, igual àquela que transparece na forma do romance, ou seja, na concepção e tessitura artística da narrativa. O princípio harmônico (que sempre transcende nas obras de Dostoiévski), além de definir a composição do romance, realiza-se, par excellence, na criação da personagem principal: o Príncipe Lev Nikoláievitch Míchkin, o Idiota.

Paradoxalmente, é na imagem artística do próprio IDIOTA que, ao se tornar uma personificação do sentimento de ilimitada compaixão e de incondicional amor ao próximo, está concebida a ideia central e a mais valiosa dessa obra deDostoiévski.

O escritor definiu o conceito de seu romance logo no início do trabalho, em janeiro de 1868; na carta a sua sobrinha,Sofia Ivánova, ele escreve:

A ideia do romance é aquela minha velha e cara, mas a tal ponto difícil, que durante longo tempo não tive coragem de tocá-la… A ideia central do romance é representar um homem absolutamente belo. No mundo não há nada mais difícil do que isso, especialmente agora. Todos os escritores, não somente nossos, mas até os estrangeiros, que se propuseram a criar uma imagem do absolutamente belo, sempre se deram por vencidos. Porque esse objetivo é imenso. O belo é um ideal, mas o ideal, seja o nosso, seja o da Europa civilizada, ainda está longe de ser elaborado. No mundo há somente uma personalidade absolutamente bela: Cristo, e a existência dessa personalidade infinita e imensamente bela certamente já é um milagre absoluto”.

Uma criatura “absolutamente bela”

Logo as primeiras páginas do romance fazem-nos mergulhar, junto com o Príncipe Míchkin (essa criatura “absolutamente bela”), no caos do mundo dominado pelo mal, pelo espírito de separação e pela trágica dualidade entre material e celestial, o que fica apresentado por toda uma série de personagens.

Mas no percurso da via dolorosa do mundo criado no universo artístico dostoievskiano, descobrimos, como Rogójin,Nastássia Filíppovna, Agláia, entre muitos outros, a imensa sede de amor e de compaixão — aqueles que transbordam do coração do Idiota e que são percebidos por todos, queiram eles ou não, em sua presença. Além de profunda compaixão, o Príncipe é dotado de profunda liberdade interior (seria difícil não se lembrar: “Eu não sou deste mundo” — João, 8: 23) e apresenta-se como uma irresistível força de atração para todos, revelando a sede espontânea do ser humano para o ideal. Mas, ao mesmo tempo, quase todos que se aproximam do Príncipe o humilham, machucam e fazem sofrer o tempo todo.

Dostoiévski sabe que não há como prevenir o desencadear catastrófico dos acontecimentos: apesar do amor ao próximo ser nutrido pelo Príncipe Míchkin com tanta abnegação, nem ele consegue impedir as forças do caos que, no final de contas, triunfam, levando a narrativa ao desfecho trágico.

O romance O Idiota eleva-se às alturas da verdadeira tragédia ao apresentar a inevitável “predestinação” do ser humano quando ele começa a se alinhar com o Mal e perde sua liberdade, afundando-se no caos… Mas Dostoiévskinão seria um grande gênio se a sua obra não resultasse em uma fortíssima catarse que nos transforma e nos eleva àtranscendência, ao deslumbramento pela luz Divina que ilumina as trevas da materialidade humana.

IHU On-Line – Em que medida o Discurso do Inquisidor, uma das partes mais famosas de Os Irmãos Karamázov, expressa os tensionamentos religiosos que perpassam seus enredos?

Elena Vássina – Do Diário de um escritor, de 1873, Dostoiévski escreve: “É bem possível que as ideias de todos os líderes do pensamento progressivo sejam filantropos e magnânimos. Mas parece-me indubitável que se a todos esses grandes ensinadores de hoje for dada a possibilidade de destruir totalmente a velha sociedade e construir uma nova, surgirão trevas, um tamanho caos, tão grosseiro, cego e desumano, que toda essa estrutura do mundo vai ruir sob as maldições da humanidade antes de ser terminada. Uma vez repudiado Cristo, a mente humana pode chegar a resultados surpreendentes. Isso é um axioma.”

No seu livro A visão do mundo de Dostoiévski, o filósofo russo Nikolai Berdiáev [16] apontou que “todos os pensamentos de Dostoiévski sobre o ser humano levavam ao problema da liberdade, às vias de sua realização no mundo, à questão da liberdade do homem de fazer sua escolha e das consequências dessa escolha. Na criação deDostoiévski existe um único tema — o trágico destino do homem, a liberdade do destino do homem. O amor é somente um dos momentos nesse destino.” E nesse sentido, a “Lenda sobre o Grande Inquisidor” é o resultado do desenvolvimento desse tema na obra do escritor.

Na opinião do Grande Inquisidor, assumir a responsabilidade e usar da liberdade dada por Deus está acima das forças humanas. Então, para fazer os homens se sentirem felizes, o Inquisidor “renova” o Cristianismo: ele substitui a liberdade por “autoridade”, o Espírito por “milagre”, a verdade pelo “mistério”. Agora as personalidades eleitas, inteligentes e fortes resolvem os problemas dos homens. “Para que Você veio nos incomodar? Pois Você veio justamente para incomodar e Você mesmo sabe disso” — diz o Inquisidor a Cristo que novamente veio ao mundo. Em resposta, Cristo dá um beijo no ancião nonagenário, vestido de batina de monge. O Inquisidor liberta Cristo, que fora encarcerado e Lhe diz na despedida: “Vá embora e não volte mais… não volte mesmo… jamais, jamais!”

“Somente agora, quando conseguimos vencer a liberdade, pela primeira vez tornou-se possível pensar na felicidade do homem” — diz o Inquisidor de Dostoiévski. “E as pessoas ficaram alegres por novamente serem levadas como rebanho e porque de seus corações fora tirado o terrível dom que lhes causava tantos sofrimentos…”

Cristo continua calado, ele permanece na sombra. A positiva ideia religiosa não encontra sua expressão verbal. Facilmente pode ser expressa somente a ideia sobre a imposição. Assim, na Legenda encontram-se temas que sempre estiveram no centro da obra de Dostoiévski: a liberdade e a imposição. O potencial destrutivo dos protagonistas que “raciocinam” e a força daqueles que vivem obedecendo às leis do coração, e não do “raciocínio”.

“Na opinião do Grande Inquisidor, assumir a responsabilidade e usar da liberdade dada por Deus está acima das forças humanas”

 

IHU On-Line – Por outro lado, como personagens como Piotr Verkhovénski (Os Demônios) e Ivan Karamázov e Smierdiákov [17] (Os Irmãos Karamázov) expressam o contraponto ao sujeito temente a Deus?

Elena Vássina – Talvez a melhor explicação do caminho contrário aos princípios do amor divino ao próximo, nós encontramos no seguinte episódio de Os irmãos Karamázov quando Dostoiévskidescreve como Ivan “declarou em tom solene que em toda a face da terra não existe absolutamente nada que obrigue os homens a amarem seus semelhantes, que essa lei da natureza, que reza que o homem ame a humanidade, não existe em absoluto e que, se até hoje existiu o amor na Terra, este não se deveu à lei natural, mas tão só ao fato de que os homens acreditavam na própria imortalidade”.

Ivan Fiódorovitch acrescentou, entre parênteses, que é nisso que consiste toda a lei natural, de sorte que, destruindo-se nos homens a fé em sua imortalidade, neles se exaure de imediato não só o amor como também toda e qualquer força para que continue a vida no mundo. E mais: então não haverá mais nada amoral, tudo será permitido, até a antropofagia.

Mas isso ainda é pouco, ele concluiu afirmando que, “para cada indivíduo particular, por exemplo, como nós aqui, que não acredita em Deus nem na própria imortalidade, a lei moral da natureza deve ser imediatamente convertida no oposto total da lei religiosa anterior, e que o egoísmo, chegando até ao crime, não só deve ser permitido ao homem, mas até mesmo reconhecido como a saída indispensável, a mais racional e quase a mais nobre para a situação”.

IHU On-Line – No caso de Raskólnikov, de Crime e Castigo, até que ponto se pode falar em sua “ressurreição” espiritual em função do amor que nutria pela prostituta Sônia?

Elena Vássina – Certamente, a prostituta Sônia desempenha um papel importantíssimo no processo da salvação de Raskólnikov, é ela que lhe fala sobre a necessidade de confissão: “Vai agora, neste instante, para em um cruzamento, inclina-te, beija primeiro a terra, que tu profanaste, e depois faz uma reverência a todo este mundo, em todas as direções que quiseres, e diz a todos, em voz alta: ‘Eu matei’. Então Deus te mandará vida mais uma vez”.

É a partir daqui que começa o caminho da ressurreição de Raskólnikov, igual a de Lázaro. E o epílogo do romance quando Raskólnikov se lança aos pés de Sônia e começa a chorar e abraçar os joelhos dela celebra a culminância epifânica da salvação espiritual da personagem a quem neste momento é dado o dom divino de sentir o amor não apenas para Sônia, mas para todo o próximo.

IHU On-Line – Em que aspectos a questão da culpa é recorrente nas obras desse escritor e qual é o peso do Cristianismo por trás dessa concepção?

Elena Vássina – Dostoiévski não fala da culpa, porque no universo religioso russo, em geral, e na religiosidade deDostoiévski, em particular, não existe o conceito da culpa (que, eu creio, é um conceito muito mais difundido na cultura ocidental), mas existe a noção básica do pecado. O mais importante para Dostoiévski é que o pecado está dentro da própria natureza humana e não vem de fora, como ele escreve em seu Diário de um escritor, de 1877: “Está claro e evidente que o mal se esconde mais profundamente no homem do que imaginam os curandeiros-socialistas; que em nenhum sistema social é possível eliminar o mal, que a alma humana fica a mesma e que a anormalidade e o pecado provém dela mesma…”

Por Márcia Junges

Francisco e Dostoiévski

Em entrevista à “Civiltà Catollica”, o Papa Francisco declarou com ênfase: “Gosto muitíssimo de Dostoiévski”. Nada comentou ou explicou a respeito. Sabemos, porém, que o escritor russo do século XIX, nascido em 1821 e falecido em 1881, produziu excelente literatura cujos personagens expressam atitudes patológicas: crimes, assassinatos, suicídios, loucura. Ambienta-se nas camadas pobres e miseráveis da sociedade. O escritor nos faz ver o fenômeno da tragédia humana no atormentado Século das Luzes. É a insuficiência da razão.

Na conclusão do romance Crime e Castigo, o personagem Raskólnikov, sonha com um mundo que padece de “um flagelo terrível e sem precedentes”. Ele se vê incluído no sonho, pois a visão do caos é universal: “eram atacados por aquela moléstia e perdiam a razão”; “Ninguém se entendia sobre o bem e sobre o mal, nem sabia quem se havia de condenar e quem se havia de absolver”; “Matavam-se uns aos outros, movidos por uma cólera absurda”; “Houve incêndios e fome. Homens e coisas pereciam. O flagelo estendia-se cada vez mais”; “No mundo inteiro só podiam salvar-se alguns homens, predestinados a refazer o gênero humano, a renovar a terra, mas ninguém via esses homens em parte alguma; ninguém ouvia as suas palavras”. Pesadelo! A incapacidade visual e auditiva sinaliza a urgência de humanismo novo.

O Papa, leitor de Dostoiévski, ao contrário, não sonha a tragédia. Atento, enxerga-a acordado. Com olhos abertos. No cenário do mundo desumano nos convoca a ver e a ouvir. Oferece remédios simples e caseiros, e ingênuos na aparência: misericórdia proativa, amor desinteressado, pobreza evangélica. Assim, afasta-se de soluções rápidas, reducionistas e ideológicas ou técnico-científicas que foram aplicadas às políticas dos séc. XIX e XX. Tais políticas aumentaram as desigualdades e agravaram as tragédias sociais. Vê nosso século, apenas nascido, atormentado por males idênticos; e ainda carente de humanismo integral.

Sem passadismo nem futurismo utópico, olha a Igreja também bastante ferida. Sua visão é a da prática medicinal humanitária. “Vejo com clareza que aquilo de que a Igreja mais precisa hoje é a capacidade de curar as feridas e de aquecer o coração dos fiéis, a proximidade. Vejo a Igreja como um hospital de campanha depois de uma batalha. É inútil perguntar a um ferido grave se tem o colesterol ou o açúcar altos. Devem curar-se as suas feridas. Depois podemos falar de todo o resto. Curar as feridas, curar as feridas… É necessário começar do básico”.

Não ocorre com a visão do Papa Francisco o pesadelo de Raskólnikov: “ninguém via esses homens… ninguém ouvia as suas palavras”. Exceto o narrador. É que o próprio Papa se faz ver e ouvir, despertando-nos para refazer e renovar. Compromete-se com sua própria liderança e visibilidade. Difícil ficar indiferente diante dele, pois mostra o diagnóstico e o tratamento pela aplicação da ternura do coração. Achará seguidores e não só admiradores ou opositores?

No discurso aos bispos do CELAM, disse-lhes da “revolução da ternura”. Retomou duas categorias que tem repetido: a proximidade e o encontro. Quanto à primeira categoria se prolonga na segunda, pois uma existe com a outra. “Sem proximidade, sem ternura, sem carinho, ignora-se a ‘revolução da ternura’ que provocou a encarnação do Verbo.” “A proximidade toma forma de diálogo e cria uma cultura do encontro.” A suavidade do discurso e da prática do Papa é empenho redobrado do amor descentrado. É mística de encarnação. É esvaziamento do eu egoísta e narcísico. Não pode ser apenas mudança minimalista de tom.

Autor : Dom Edson de Castro Homem
Bispo Auxiliar da Arquidiocese do Rio de Janeiro

Notas:

[1] Trata-se da entrevista Dostoiévski: nas profundezas da alma humana e da literatura, concedida à IHU On-Line, nº edição 195, de 11-09-2006, disponível em http://bit.ly/1bLNqec. (Nota da IHU On-Line)

[2] Fiódor Mikhailovich Dostoiévski (1821-1881): um dos maiores escritores russos e tido como um dos fundadores do existencialismo. De sua vasta obra, destacamos Crime e castigo, O Idiota, Os Demônios e Os Irmãos Karamázov. A esse autor a IHU On-Line edição 195, de 11-09-2006, dedicou a matéria de capa, intitulada Dostoiévski. Pelos subterrâneos do ser humano, disponível em http://bit.ly/ihuon195.

[3] Rodion Românovitch Raskólnikov: personagem principal do livro Crime e Castigo, de Dostoiévski, publicado em 1866. Ele também é referido no romance pelo dimunutivo de seu primeiro nome, Ródia ou Rodka. O nome Raskólnikov, o mais usado na narrativa, provém da palavra raskolnik que significa cisão ou cisma, caracterizando o personagem como cindido e atormentado. (Nota da IHU On-Line)

[4] Círculo Petrashevski: grupo de discussão literária formado por intelectuais progressistas em São Petersburgo, organizado por Mikhail Petrashevski, um seguidor do socialista utópico francês Charles Fourier. A maior parte de seus integrantes se opôs à autocracia do czar e ao sistema de semi-servidão. Entre os componentes do grupo estavam os escritores Dostoiévski e Saltykova, além dos poetas Pie-Shchedrin e Shcheyev, Maikov e Taras Shevchenko. Nicolau I, preocupado com a possibilidade de que a Revolução de 1848 propagar-se pela Rússia, confundiu o grupo com uma revolucionária organização subversiva. O círculo foi banido em 1849 a seu mando, seus membros foram detidos e alguns fuzilados. (Nota da IHU On-Line)

[5] Czar Nicolau I (1796-1855): imperador da Rússia (1825-1855), filho de Paulo I. Instaurou um governo absolutista, conquistou Erevan à Pérsia (1828), fez da Polônia uma província russa (1830), defendeu a Turquia contra o Egito, mas morreu antes do fim da Guerra da Crimeia. Durante seu governo tentou eliminar os movimentos nacionalistas, perpetuar os privilégios da aristocracia e impedir o avanço do liberalismo. Também reprimiu a insurreição decembrista em 1825 e apoiou a Áustria no controle da revolta húngara de 1848, o que lhe valeu o epíteto de o guarda da Europa.

Em 1830, depois de reiteradamente negar-se a aceitar os limites constitucionais fixados pelo congresso polaco, foi deposto como rei da Polônia pelo chamado Levante de Novembro. Nicolau respondeu aniquilando os insurrectos e anexando a Polônia como província russa. Teve uma política expansionista que começou com a Guerra da Criméia.

Faleceu em São Petersburgo em 1855, antes que britânicos e franceses, aliados do Império Otomano na guerra, triunfassem no cerco de Sebastopol, abrindo o caminho às reformas efetuadas por seu filho Alexandre II. (Nota da IHU On-Line)

[6] Достоевский Ф. М. Полн. собр. соч.: В 30 т. Т. 28. Кн. 1. Л., 1985, с. 176. (Nota da entrevistada)

[7] Idem, vol.27, 1984, p. 86. (Nota da entrevistada)

[8] Personagem da obra Os Demônios (1872), de Dostoiévski. (Nota da IHU On-Line)

[9] Personagem da obra O idiota (1868), de Dostoiévski. (Nota da IHU On-Line)

[10] Ivã Fiodórovith Karamázov: personagem de Os irmãos Karamázov, obra do escritor russo Fiódor Dostoiévski. Era um intelectual e niilista que “doutrinou” o meio-irmão Smierdiákov, criado da casa, de que “tudo é permitido”. O diálogo conhecido como Grande Inquisidor, no qual essa afirmação é feita, acontece entre Ivã e Aliéksiei, o filho religioso. Sobre Dostoiévski, confira a edição 195 da IHU On-Line, de 11-09-2006. (Nota da IHU On-Line)

[11] Sonya Marmeladova: é a principal heroína da novela famosa por Dostoiévski – Crime e Castigo (1866). Esse romance psicológico foi escrito nos anos 1865-1866 e até hoje continua a ser popular e bem-sucedido. O romance é popular não só na Rússia, mas em todo o mundo. Marmeladova Sonya e Raskolnikov são os dois personagens principais da novela. (Nota da IHU On-Line)

[12] Príncipe Míchkin: personagem principal do romance O idiota. Ao longo da obra, o Príncipe mostrará ser honesto, bondoso e romântico, mas terá problemas com isso, pois os outros acham que isso é ser idiota. Príncipe Míchkin morou na Suíça por vários anos para tratar de sua idiotia, quando precisou voltar à Rússia para reclamar uma herança, estando praticamente curado. Na Rússia, conhece uma parente distante e afeiçoa-se a ela. Dostoiévski nesse livro fala do nacionalismo russo e do catolicismo eslavo. Com o Príncipe, ele tenta resgatar uma figura pura e quase santa de uma sociedade russa que talvez tenha existido. O livro é considerado o mais típico de seu estilo, com abundantes personagens, análises psicológicas, histórias e humor. (Nota da IHU On-Line)

[13] Aliocha: personagem principal do romance Os irmãos Karamazov. No entanto, o próprio autor revela que este homem nada tem de herói, no sentido convencional do termo. Passa quase despercebido durante grande parte do enredo, mas há uma chave para compreender a razão que levou Dostoiévski a colocá-lo como “herói”. É o único personagem que não julga ninguém. É esta uma das grandes lições do mestre russo: a maioria dos homens cede sempre à tentação de julgar. Aliocha, pelo contrário, ouve, compreende e nunca faz juízos de valor sobre os outros. É assim uma espécie de guardião da sensatez perante as loucuras e paixões dos Karamazov. (Nota da IHU On-Line)

[14] Starets: pessoa que desempenha função de conselheiro e mestre nos mosteiros ortodoxos. Sua sabedoria remonta tanto à experiência quanto à intuição. Acredita-se que através da prática ascética e uma vida virtuosa, o Espírito Santo lhes oferece dons especiais, incluindo a habilidade de curar, realizar profecias e se constituir como guia e direção espiritual efetiva. (Nota da IHU On-Line)

[15] Hans Holbein (1497-1543): pintor alemão, conhecido como Hans Holbein, o Jovem. Uma de suas obras mais conhecidas é O Cristo morto, datada de 1521. (Nota da IHU On-Line)

[16] Nikolai Alexandrovich Berdiaev (1874-1948): religioso e filósofo político russo. Era devoto do Cristianismo Ortodoxo, mas frequentemente criticava a instituição da Igreja. Um inflamado artigo publicado em 1913 criticando o Santo Sínodo da Igreja Ortodoxa Russa levou-o a ser acusado do crime de blasfêmia, recebendo a punição de exílio perpétuo na Sibéria. Vieram a Primeira Guerra Mundial e a Revolução Bolchevique, que impediram que o assunto fosse posteriormente julgado.

Em setembro de 1922, Berdiaev selecionou um grupo de 160 proeminentes escritores e universitários, intelectuais que o governo bolchevique considerava objetáveis, tendo forçado-os ao exílio no chamado ‘philosophers ship’. Em geral, eles não eram partidários nem do Czarismo nem do regime dos bolcheviques, preferindo formas menos autocráticas de governo. Foram incluídos os que defendiam a liberdade pessoal, desenvolvimento espiritual, ética cristã, e um caminho informado pela razão e guiado pela fé. (Nota da IHU On-Line)

[17] Smierdiákov: filho do pai Karamázov com uma moradora de rua, e portanto meio irmão de Aliocha, Ivã e Dimitri, é o criado na mansão da família. Epilético e não reconhecido como membro do clã, é o perpetrador do assassinato do patriarca após ser “convencido” por Ivã de cometer o parricídio. (Nota da IHU On-Line)

Fonte:   Unisinos / Site da Arquidiocese do Rio de Janeiro



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