A liberdade possível

Publicado em 06/09/2012 | Categoria: Notícias |


Por Sabrina Duran

Os pensamentos são livres, diz uma canção popular alemã. Compreende-se que tenha sido proibido cantá-la no terceiro Reich. Mas a ordem de “esquecê-la”, própria de um regime totalitário, somente teve o efeito de fazer com que fosse cantada com mais entusiasmo na clandestinidade, ou ao menos por dentro, no coração de cada um, isto é, naquele lugar íntimo onde as ordens não chegam e onde os “outros” não podem entrar. (Jutta Burggraf, professora e doutora em psicopedagogia, no ensaio Atreva-se a pensar com liberdade)

Você conseguiria vencer um inimigo invencível? Poderia voar num limite improvável ou tocar um chão inacessível? Você é forte o bastante para ser, fazer ou conquistar algo que não está ao seu alcance?

Existe uma situação contraditória na vida humana que, acredito, se apresenta a todas as pessoas com intensidades distintas, mas com clareza incontestável: a necessidade de ser livre e a dificuldade de sê-lo de maneira, se não absoluta, ao menos satisfatória.

Nas primeiras linhas desse texto que tratará da liberdade, usei algumas frases da música Sonho Impossível, versão de Chico Buarque e Ruy Guerra para The impossible dream, de J.Darion e M.Leigh. A letra expressa desejos contrapostos a circunstâncias desfavoráveis. Sonho Impossível é, no entanto, uma música esperançosa… apesar de tudo:

“E assim, seja lá como for

Vai ter fim, a infinita aflição

E o mundo vai ver uma flor

Brotar do impossível chão”

Esse “apesar de tudo” é adequado quando se fala da liberdade. A noção contemporânea sobre o que significa ser livre exclui todo e qualquer obstáculo da vida das pessoas. Ou seja: é livre quem não tem qualquer objeção ou coação às suas vontades, pensamentos e ações.

Essa noção de liberdade, porém, parece equivocada por um motivo muito simples: o homem é limitado em sua própria natureza. Basta dizer que todos temos um corpo sujeito a doenças e que, além disso, é mortal. Sendo assim, ainda que nenhum obstáculo exterior obstrua nosso caminho, em algum momento encontraremos um obstáculo interior – seja uma doença, uma dificuldade com cálculos matemáticos, uma fraqueza moral – que nos fará menos livres para realizar o que desejamos ou precisamos.

Mas se, ao contrário do que nos sugere a noção contemporânea do que é ser livre, consideramos a natureza humana com suas qualidades e deficiências, podemos dizer que ser livre significa prescindir de qualquer determinação, coação externa ou necessidades naturais existentes para realizar certas ações. Ou seja: a liberdade é possível, sim, apesar de todas as circunstâncias que dificultam sua conquista.

Para prescindir de algo, o homem precisa querer, precisa não se sujeitar. E aí está a chave para a verdadeira liberdade: uma vontade forte, capaz de guiar os próprios atos e pensamentos. Assim resume o grego Aristóteles: “O homem livre é causa e senhor de si mesmo”.

LIVRE, APESAR DE PRESO

Lembro-me agora da auto-biografia Cinco pães e dois peixes, escrita por François-Xavier Nguyen Van Thuân, sacerdote católico, vietnamita, que teve a prisão decretada em meados da década de 1970 pelo governo comunista do Vietnã. Van Thuân, que foi detido por ser católico, passou 14 anos na prisão, oito dos quais numa solitária úmida, sem janelas, insalubre.

No início do seu “martírio sem morte”, Van Thuân viu-se privado da saúde, tanto física quanto mental. Fechado num cubículo, era obrigado a passar várias horas respirando por um buraco sob a porta a fim de conseguir mais oxigênio; para não ter os músculos atrofiados, andava – como podia – de um lado para o outro na cela. A loucura que brota do silêncio absoluto, da falta de qualquer contato humano, só não o abateu porque, quando conseguia, recitava mentalmente orações e canções litúrgicas que havia decorado.

Passada a fase de perplexidade com o que lhe acontecia, o sacerdote vietnamita começou a entender que, apesar de estar limitado por situações completamente adversas, aquilo que havia de mais importante em si não tinha qualquer grilhão: o amor por Deus que sentia e sua vontade de apresentar esse amor a outras pessoas.

Quando passou para uma cela com outros presos – alguns dos quais católicos – Van Thuân conseguiu o apoio dos seus companheiros de cárcere para celebrar a missa de um modo audacioso: clandestinamente, sob os lençóis que usavam para se cobrir, usando vinho que ele mesmo pedia ao carcereiro alegando ser para fins terapêuticos – o que não deixa de ser verdade: para Van Thuân e os demais presos, a missa era terapia para a alma.

O sacerdote católico, por sua decisão de não deixar que o clima de opressão o endurecesse, esforçou-se para fazer amizade com os carcereiros que o mantinham recluso. Não há dúvidas de que sofreu resistências no começo, mas sua paciência e delicadeza foram tamanhas que, tempos depois, ensinava doutrina cristã e até músicas em latim para os guardas.

“Em outubro de 1975, fiz um sinal a um menino de sete anos, Quang, que regressava da missa às 5 horas, ainda escuro: ‘Diz à tua mãe que me compre blocos velhos de calendários’. Mais tarde, também na escuridão, Quang me traz os calendários, e em todas as noites de outubro e novembro de 1975 escrevi da prisão minha mensagem ao meu povo. Cada manhã o menino vinha recolher as folhas para levá-las à sua casa e fazer que seus irmãos e irmãs copiassem-nas”.

A narrativa de Van Thuân mostra como ele conseguiu transpor os limites físicos de sua liberdade para continuar falando aos fiéis da paróquia que coordenava quando ainda estava fisicamente livre. As anotações nos blocos velhos de calendário, lidas por dezenas de pessoas quando o sacerdote ainda estava preso, deram origem ao livro O caminho da esperança, publicado, tempos depois, em pelo menos oito línguas. Van Thuân faleceu em 2002, quando já estava livre… fisicamente livre, porque “interiormente”, nunca esteve preso.

O exemplo do sacerdote católico é um caso extremo, é verdade. Na média dos homens e mulheres que existem, poucos passarão pela experiência do cárcere. Mas é preciso depreender desse episódio particular o que há de geral quando se fala de liberdade: todos têm um desejo profundo de ser livres. Por isso, seja qual for o anteparo que dificulte a caminhada, o homem, com a criatividade que também lhe é natural, procurará e encontrará outras formas – talvez não as ideais, mas as possíveis – de prosseguir para onde quer.

LIBERDADE NÃO É ONIPOTÊNCIA

Liberdade não é onipotência. Essa verdade, embora evidente, custa a ser aceita por nós porque contraria desejos, posterga planos, inviabiliza ações e frustra expectativas. Não aceitamos o fato de ter que abrir mão de algumas coisas para tomar posse de outras.

Mas já está claro que, por causa das limitações naturais do ser humano, é impossível ser, ter e fazer tudo ao mesmo tempo, por mais livres que sejamos.

A liberdade absoluta só é possível enquanto pura potência, enquanto é apenas possibilidade. Eu posso fazer qualquer escolha? Sim, sem dúvida. Mas, a partir do momento que escolho um bem, abro mão de outros tantos e limito, assim, minha liberdade ao bem escolhido.

Essa limitação é necessária para que a liberdade seja efetiva. Se quero a liberdade absoluta, terei que renunciar a qualquer tipo de escolha, de realização. Sendo assim, acabarei sem nada. É mais ou menos como a criança que, por receio de “gastar” um brinquedo novo, deixa-o guardado. Ela o manterá intacto, sem dúvida, mas estará se privando do prazer que o brinquedo lhe oferece.

UM PROBLEMA FILOSÓFICO

Muitos dos pensadores clássicos consideraram que a vontade humana está inclinada a buscar o bem. Sendo assim, podemos dizer que não somos livres, uma vez que estamos “determinados” ao bem. Mas o filósofo medieval Tomás de Aquino resolveu esse paradoxo e, mais que isso, descortinou uma verdade animadora sobre a liberdade.

Sim, a vontade humana está “sempre inclinada a querer o bem em geral”, diz Tomás de Aquino. Logo, querer o mal puro para si é algo que o homem não pode escolher – mesmo quando comete um ato objetivamente ruim, como o suicídio, o ser humano busca a felicidade, o bem, busca sentir-se melhor; isso, claro, é um quadro patológico, tal como o masoquismo, que busca o prazer na dor.

No entanto, diz o filósofo, o homem, embora determinado a querer sempre o bem em geral, não está determinado a escolher um único bem. E aí vem a verdade animadora sobre a liberdade: as possibilidades de escolha do homem sobre qual bem mais lhe convém são quase infinitas. É como ter um ponto de chegada e inúmeros itinerários para atingi-lo. Basta escolher.

Algumas vezes, é claro, não nos caberá escolher entre um ou outro bem; nos caberá apenas aceitar e querer – sem resignação – o que nos vem dado. Mas, quando a escolha tem lugar no processo que nos conduz a uma ação ou pensamento livres, é importante que essa escolha seja bem feita.

UMA BOA ESCOLHA POSSIBILITA OUTRAS

A qualidade de uma escolha é fundamental para a vivência da liberdade. O que é uma boa ou má escolha é tema para outro texto, mas uma coisa é importante deixar clara: uma escolha será tanto melhor quanto mais possibilidades de escolha ela proporcionar adiante. Um motorista, por exemplo, que escolha parar diante de um farol vermelho, terá mais chances de seguir percorrendo a avenida sem qualquer colisão e, melhor ainda: poderá chegar ao destino almejado. O motorista que decide ultrapassar o farol vermelho, no entanto, reduz, e muito, suas chances de seguir o caminho que tem à frente, pois a qualquer momento pode sofrer um acidente.

O exemplo é simples e evidente para ser didático. Nas decisões que envolvem relacionamentos e questões morais, porém, as coisas não são tão preto no branco. Mas o fato de que uma boa escolha possibilita outras tantas vale para qualquer circunstância da vida, das prosaicas às mais complexas.

LIBERDADE MAIS VIVA

Creio que não existam receitas prontas sobre como viver melhor a liberdade – e se existem, não as conheço. O fato é que a liberdade, embora entendida como a capacidade da vontade humana de se auto-determinar ao bem, é única para cada pessoa que a vive. E essa riqueza humana é inviolável. As linhas-mestras apontadas pelos filósofos sobre esse assunto, e que nos ajudam a compreender e tornar mais viva a liberdade, são as seguintes:

1) Agir com liberdade é possível mesmo quando as circunstâncias externas e as limitações internas dificultam o processo. Basta usar a criatividade, “furar” os bloqueios e chegar a uma liberdade, se não ideal, ao menos possível.

2) Liberdade não é onipotência. É preciso aceitar que temos limitações capazes de interferir na nossa liberdade.

3) O homem, pela sua própria natureza, está condicionado a buscar sempre o bem geral. Mas a escolha de bens particulares – como a pessoa com a qual vamos nos casar, a faculdade que iremos cursar, os amigos que teremos e os rumos que daremos à nossa vida – não está, de modo algum, condicionada.

4) Os pensamentos são sempre livres, ainda que sejamos proibidos de externá-los.

Ouça a música Sonho Impossível (Clique aqui). Sugestão: a terceira versão é a melhor.

Fonte: Filosofia para usar/ Quadrante



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