A ecologia deles e a nossa. A profecia de Gorz

Publicado em 25/11/2016 | Categoria: Notícias |


                            “Só é digno de você aquilo que é bom para todos”.

 

 

 

                       ecologia-capitalismo   “Há mais de 40 anos, o filósofo André Gorz alertava: o capitalismo tentaria capturar causas ambientais. Antídoto: a ideia radical de que uma boa vida não está ligada a privilégios, mas à construção do Comum”, escreve Razmig Keucheyan, professor de sociologia na Universidade de Bordeaux (Centre Émile Durkheim), autor do livro La nature est un champ de bataille: Essai d’écologie politique, 2014 (em tradução livre, A natureza como campo de batalha. Ensaio de ecologia política), em artigo publicado por OutrasPalavras, 24-11-2016. A tradução é de Inês Castilho.

Eis o artigo.

Há 42 anos, em 1974, André Gorz publicava na revista Le sauvage um texto famoso, intitulado Leur écologie et la nôtre. Le Monde diplomatique reeditou em 2010 extratos desse texto. E compreende-se porque: é simplesmente espantosa a previsão de Gorz, sua capacidade de antecipar a evolução das relações entre o capitalismo e a natureza. Gorz descreve desde 1974 o mundo em que o nosso está se transformando.

Veja o que diz Gorz:

“A consideração de exigências ecológicas (…) já tem bastante adeptos capitalistas, porque sua aceitação por parte do poder do dinheiro torna-se uma séria probabilidade. [A luta ecológica] pode criar dificuldades para o capitalismo e forçá-lo a mudar; mas, depois de resistir por muito tempo na base da força e da astúcia, o capitalismo finalmente cederá, porque o impasse ecológico terá se tornado inelutável; ele absorverá essa restrição, como absorveu todas as outras.”

O argumento de Gorz é simples: o capitalismo é um sistema resiliente. Pode encontrar dificuldades por causa da crise ecológica, mas no final se adaptará. Por que Gorz diz isso? Se o capitalismo conseguiu existir durante três séculos, é porque beneficiou-se de uma natureza gratuita, uma natureza que não era preciso “reproduzir”. Essa natureza gratuita, o capitalismo a utilizou como input e como output ao mesmo tempo. A natureza constituiu-se em fonte de inputs gratuitos para o capitalismo, pois, desde que existe, o sistema captura os recursos naturais “brutos” para transformá-los em produtos. Mas a natureza constituiu-se também em output, uma “cesta de lixo global” onde são despejados os dejetos da acumulação do capital, isso a que os economistas neoliberais chamam pudicamente de “externalidades negativas”.

Com a crise ambiental, a natureza não exerce mais essa dupla função de input e output gratuitos para o capitalismo. A dialética do sistema e da natureza entra em crise. Certos recursos naturais cruciais para a vida das sociedades modernas (água, combustíveis fósseis, ar não poluído etc.) estão desaparecendo, enquanto a manutenção ou limpeza do meio ambiente tornam-se mais e mais caros. Por exemplo, o custo da poluição para o sistema de saúde não para de crescer, pesando sobre a taxa de lucro. A conclusão que alguns tiram desse fato é clara: o capitalismo não vai durar muito mais tempo, precisamente porque tem uma necessidade imperativa dessa natureza gratuita. Sem ela, a acumulação do capital perde seu substrato material.

Gorz não está de acordo com esse raciocínio, ainda muito comum na esquerda – ele acha que o capitalismo saberá absorver a restrição ambiental. Com a crise ecológica, a natureza deve agora ser “reproduzida”, tal como a força de trabalho. “Reproduzida” significa que volumes crescentes de capital terão de ser investidos para despoluir ou proteger as populações – ou determinadas porções privilegiadas da população – das catástrofes naturais.

Um exemplo é o projeto de gestão “ecológica” do East River em Nova York, o East Side Coastal Resiliency Project. Com o custo de meio bilhão de dólares, é a primeira etapa da adaptação da cidade às mudanças climáticas e a catástrofes naturais, cada vez mais numerosas e intensas. Foi lançado após a devastação provocada na cidade pelo furacão Sandy, em outubro de 2012. É liderado pela estrelada empresa BIG, de arquitetos dinamarqueses (a arquitetura “verde” é um negócio florescente), e está voltado à proteção das áreas mais ricas de Manhattan.

O capital mobilizado para a “reprodução” da natureza terá dois efeitos possíveis sobre o sistema: ou a taxa de lucro baixará, pois essa reprodução será pouco rentável; ou então o preço das mercadorias produzidas dessa maneira aumentará, de forma que o lucro seja mantido, ou até aumente. Essa segunda eventualidade é a mais provável, diz Gorz. O imperativo de reprodução da natureza levará a uma alta geral dos preços, as mercadorias ou as infraestruturas se tornarão inacessíveis à população – mas acessíveis aos endinheirados. O poder de compra dos mais pobres será comprimido e as desigualdades aumentarão devido à crise ambiental.

Gorz conclui assim:

“Levar em conta os custos ecológicos terá, em resumo, os mesmos efeitos sociais e econômicos da crise do petróleo. E o capitalismo, longe de sucumbir à crise, irá geri-la como sempre fez: grupos financeiros bem situados lucrarão com as dificuldades de grupos rivais para absorver a preço baixo e expandir sua apropriação sobre a economia. O poder central reforçará o controle sobre a sociedade: tecnocratas calcularão normas “ótimas” de despoluição e produção, elaborarão as regulamentações, estendendo os domínios da ‘vida programada’ e o campo de ação dos aparelhos de repressão.”

Aquilo que Gorz podia somente imaginar, extrapolar, é o que vemos tomar forma diante dos nossos olhos. Assistimos hoje à adaptação do capitalismo à crise ambiental, uma adaptação de duas ordens. A primeira, reflexo do capitalismo em situação de crise, é sempre mercantilizar, mercantilizar a natureza. Essa mercantilização opera hoje, por exemplo, por meio da criação de produtos financeiros “segmentados” sobre a natureza, as catástrofes naturais ou a biodiversidade. Os mercados de carbono, os derivativos climáticos, os títulos de catástrofe ou ainda os bancos de ativos de biodiversidade estão entre esses produtos financeiros [1].

Mas o capitalismo não se contenta em mercantilizar a natureza, é mais esperto que isso. Contrariamente ao que a esquerda frequentemente imagina, os capitalistas são bem capazes de pensar a longo prazo, em especial quando seus lucros estão em jogo. Mais exatamente, em épocas de crise como hoje, as racionalidades capitalistas de curto e longo prazo entram em conflito – e as atuais hesitações das classes dominantes em relação à crise climática são testemunhas disso.

É o que demonstra o caso da BlackRock — a mais importante gestor de ativos financeiros do mundo. Ele gere cerca de 5 trilhões de euros. Publicou, em setembro passado, um relatório intitulado Adapting portfolios to climate change [2], no qual diz que os investidores devem a partir de agora incluir, em suas estratégias de investimento, o respeito ao ambiente nas empresas em que investem: emissão de gases de efeito estufa, danos à biodiversidade, consumo de água etc. A BlackRock lhes diz, preto no branco: é preciso investir somente nas empresas que se colocam seriamente a questão das mudanças climáticas e de seus efeitos sobre sua rentabilidade.

Esses fundos de investimento por certo não foram subitamente convertidos ao ambientalismo. O argumento da BlackRock é que, depois da COP21, a pressão da opinião pública e dos governos sobre as corporações vai aumentar, e a regulamentação ambiental será mais estrita. Isso significa que as empresas que não levam a sério essa dimensão irão ver-se em dificuldades e serão, portanto, menos lucrativas aos investidores. A expressão consagrada pelos financistas em inglês é “strand assets”, um termo que designa os ativos financeiros cujo valor diminuirá à medida que a regulação ambiental se tornar mais exigente. O relatório da BlackRock vai considerar como inevitável até a redução futura dos subsídios estatais para as indústrias fósseis.

Essa inesperada virada ecológica da BlackRock, contudo, entra rapidamente em contradição com a necessidade de realizar lucros aqui e agora. A imprensa financeira relata que, alguns meses antes da publicação desse relatório, a BlackRock impediu a votação de uma resolução “ecológica” durante a assembleia anual de acionistas da ExxonMobil. [3] A ExxonMobil é uma gigante do petróleo, o segundo valor de mercado do mundo, atrás apenas da Apple. O volume de negócios chega ao nível do PIB da Áustria. A BlackRock e outra gestora de ativos, a Vanguard, são os dois maiores acionistas da Exxon; juntas, possuem 11% do capital.

Um grupo de acionistas “ético”, que detém ações da Exxon, submeteu no início do ano à assembleia uma resolução pela qual a Exxon deve explicitar sua estratégia pós COP21. Como o conselho de administração da Exxon enxerga os efeitos do acordo de Paris sobre seus investimentos futuros, em matéria de energias fósseis? Não seria tempo de reorientar esses investimentos em direção a energias renováveis?

Os representantes da BlackRock na assembleia de acionistas votaram contra essa resolução. Eles não se opuseram apenas a que a Exxon renuncie às energias fósseis. Também impediram sua direção de explicar para os acionistas quais as consequências do acordo de Paris para a estratégia de investimento futuro da corporação. Em resumo, a BlackRock fez exatamente o contrário do que preconiza seu relatório.

Como explicar essa esquisofrenia dos capitalistas, da qual poderíamos dar numerosos exemplos? De um lado, publica-se um documento afirmando que os parâmetros ambientais devem entrar em consideração nas estratégias de investimento; de outro, opõe-se a uma resolução “minimalista” que convida a direção de uma major do petróleo a refletir sobre o pós COP21. Claro, sempre é possível dizer que os dirigentes da BlackRock são hipócritas, ou que fazem a chamada “lavagem verde”, ou greenwashing: eles dizem à opinião pública o que ela quer ouvir em matéria ambiental, mas paralelamente praticam business as usual.

Há talvez uma parte disso, mas não há razão para subestimar o fato de que os capitalistas se colocam, de fato, perguntas quanto à atitude a adotar no contexto da crise climática.

Há três coisas para analisar, aqui. Primeiro, a lógica do curto e do longo prazo entraram em conflito. O capital financeiro tem uma tendência congênita ao curto-prazismo, a buscar lucros imediatos. As instituições que permitiriam disciplinar esse curto-prazismo em matéria ambiental ainda não foram inventadas, e portanto o curto prazo venceu. Mas no passado, para sair de outras crises – como a dos anos 1930, por exemplo — o capitalismo soube perfeitamente disciplinar-se, ou ser disciplinado pelo Estado. Não há razão para pensar que será incapaz desta vez. Mas para isso são necessárias novas instituições.

Em segundo lugar, o relatório BlackRock tem o mérito de enviar um sinal às corporações. “O limite ambiental vai tornar-se mais premente depois da COP21. Se querem que a gente invista em seu negócio no futuro, reflita sobre os seus efeitos sobre a rentabilidade e tome as medidas que se impõem. Caso contrário, não lhe confiaremos nosso dinheiro”, é a mensagem enviada pela BlackRock.

Finalmente, esses fundos de investimento investem paralelamente em setores da economia que sofrem os efeitos das mudanças climáticas. Se um fundo de investimento possui ações de uma seguradora, tipo Allianz ou Axa, ele vê a curva de remuneração paga aos segurados subir como uma flecha depois de várias décadas, devido ao aumento das catástrofes naturais. Tem, portanto, um interesse objetivo na existência de menos catástrofes naturais, e portanto em reduzir as emissões de gases de efeito estufa das empresas em que investe, em outros lugares.

Voltemos a Gorz. Quando o capitalismo assimilar a pressão ambiental, diz Gorz, ele o fará em seu próprio interesse, e não no interesse das populações. Há a ecologia “deles”, a dos capitalistas, e há a “nossa”, das populações. Mas o que distingue a economia deles da nossa? A resposta de Gorz é muito estimulante, ela esboça um programa de trabalho político que devemos elaborar coletivamente.

Segundo Gorz, a divisa da sociedade capitalista é a seguinte: Aquilo que é bom para todos não vale nada. Você só será respeitável se for “melhor” do que outros. A esse slogan capitalista é preciso opor um outro, uma divisa ecológica: Só é digno de você aquilo que é bom para todos. Só merece ser produzido o que não favorece nem diminui ninguém.

O que distingue, para Gorz, “a ecologia deles da nossa” é a concepção de necessidade humana que sustenta cada uma. Na sociedade capitalista, a escolha daquilo que um indivíduo necessita para viver uma “boa vida” é da alçada do próprio indivíduo — ou seja, em última instância é do mercado, pois a vontade individual frequentemente não pode muita coisa diante do poder de persuasão do mercado. E a lógica do mercado é a da diferença: eu não sou respeitável a não ser que seja “melhor” que os outros. Claro, essa discussão é enganosa, pois o mercado promete a mesma “diferença” a milhões de indivíduos, isso que tende, em última instância, a homogeneizar tudo, e estabelecer “vidas programadas”, como diz Gorz.

Para pensar nossas necessidades fora da lógica do mercado, para romper com as subjetividades consumistas, é preciso opor a ele uma força de poder equivalente. Essa força não pode ser outra além da deliberação coletiva, a democracia, uma democracia radical. Às necessidades criadas artificialmente pelo mercado, é preciso opor necessidades coletivamente discutidas e articuladas: “Só é digno de você aquilo que é bom para todos”. A partir disso, trata-se – e isso é o mais difícil – de colocar-se de acordo sobre aquilo que é “bom para todos” — algo que só aparece por meio da deliberação coletiva.

A questão que Gorz não aborda, e da qual deveríamos nos ocupar nos anos que virão é: em quais tipos de coletivos, em quais “conselhos cidadãos” as necessidades “boas para todos” — aí incluído o meio ambiente — poderiam ser colocadas em discussão? Aqui é preciso inspirar-se nos “grupos de reflexão” feministas dos anos 1970. Nesses grupos, discutiam-se os aspectos mais íntimos da vida, pensando-os em sua ligação com a política. Esses grupos permitiram que as mulheres saíssem do isolamento, discutissem a opressão de que eram vítimas, e também tomassem consciência de sua força quando se organizavam.

Colocar-se de acordo sobre necessidades “autênticas”, que escapem à falsa diferença prometida pelo mercado e que sejam ecologicamente duráveis, poderia ser algo a fazer em coletivos do mesmo tipo. Combatendo o consumismo de que somos todos vítimas em níveis diversos, esses coletivos poderiam também pronunciar-se sobre o tipo e a quantidade de bens produzidos, tal como faziam, antes, os conselhos de trabalhadores. Este é talvez um dos futuros caminhos da radicalização da democracia, e também da superação do capitalismo.

Notas

[1] Sobre isso, ver Razmig Keucheyan, La nature est un champ de bataille. Essai d’écologie politique, Paris, editora Découverte, 2014, cap. 2.
[2] Disponível no endereço: https://www.blackrock.com/investing/literature/whitepaper/bii-climate-change-2016-us.pdf
[3] Ver Financial Times, 6 de setembro de 2016.

Leia também:

Os três legados de Gorz

As reflexões de Gorz sobre o trabalho, explica André Langer, “sempre tiveram o cuidado para restringir a ação do capitalismo sobre a ação humana”. A libertação no trabalho, segundo o pensamento do filósofo francês, só ocorre fora do trabalho. Para Langer, essa idéia é significativa “para perceber a radicalidade de seu pensamento anticapitalista, antiprodutivo e antieconomicista”.

Por: IHU Online

Na entrevista especial, concedida à IHU On-Line, por e-mail, nesta semana, Langer atribui um triplo legado a André Gorz. Ele destaca, as reflexões sobre a ecologia, o trabalho e a renda social garantida. “Estou convencido de que esses três núcleos aglutinadores não estão separados e que giram em torno de órbitas teóricas diferentes. Pelo contrário, são, vamos dizê-lo, assim, corpos de uma mesma constelação”, explica.

André Langer produziu o Cadernos IHU nº 5, intitulado Pelo Êxodo da Sociedade Salarial. A Evolução do Conceito de Trabalho em André Gorz. A pesquisa está disponível no sítio do IHU (www.unisinos.br/ihu). Langer é mestre em Ciências Sociais pela Unisinos e doutorando em Ciências Sociais na Universidade Federal do Paraná (UFPR). Atualmente, ele é pesquisador do Centro de Pesquisa e Apoio aos Trabalhadores – CEPAT – com sede em Curitiba, PR. O Cepat é parceiro estratégico do IHU. Em fina sintonia com o IHU, o Cepat publica semanalmente, nas Notícias do Dia da página eletrônica do IHU, www.unisinos.br/ihu uma análise semanal da conjuntura, disponível para download no início da noite das terças-feiras no blog do IHU e nas manhãs de quarta-feira nas Notícias do Dia.

IHU On-Line – O senhor afirma que é possível dividir a obra de Gorz em duas fases diferentes. Como o senhor avalia essas duas passagens do pensamento dele? A partir de que momento Gorz percebeu as mudanças no mundo do trabalho?
André Langer –
Penso que seja perfeitamente possível dividir a produção teórica de Gorz em duas fases distintas. Na verdade, essa é uma distinção introduzida pelo professor Josué Pereira da Silva , da Unicamp, e que acho pertinente. Pode-se situar a inflexão do pensamento de Gorz no final da década de 1970. O livro Adeus ao proletariado, publicado na França em 1980, recolhe embrionariamente a ruptura na sua reflexão sobre o trabalho e introduz os grandes temas que Gorz irá trabalhar, aprofundar e mesmo revisar daí em diante.

Françoise Gollain  e Dominique Méda  referem-se de outra maneira a esta ruptura. Para elas, é possível dividir os pensadores da questão do trabalho em duas correntes ou campos: a corrente essencialista e a corrente histórica. Esta distinção clareia a noção de trabalho que Gorz passará a desenvolver. Quando Gorz afirma que o trabalho é uma “invenção” da modernidade, assume claramente uma perspectiva histórica de trabalho. O trabalho entendido como “emprego” é algo recente na história, é contemporâneo do capitalismo industrial. Gorz desmancha essa idéia essencialista de trabalho que cultivamos durante muito tempo, mas que não era realista, ainda que cheia de conseqüências.

Emprego x Trabalho

A preocupação de Gorz nesta segunda fase inscreve-se na tentativa de delimitar teoricamente a noção de trabalho. A distinção entre emprego e trabalho ou entre trabalho e atividades sem fins econômicos, como preferia denominar, é central para que pudesse proceder a uma restrição da noção de trabalho. Gorz é um crítico feroz do economicismo. Suas reflexões sobre o trabalho sempre tiveram o cuidado para restringir a ação do capitalismo sobre a ação humana; roubar espaços e tempos do capitalismo sempre esteve em seu horizonte. E a distinção que faz favorece esta restrição da racionalidade econômica.

Gorz acreditava que já não era mais possível haver libertação no trabalho, mas apenas fora dele. Esse é outro aspecto que caracteriza a mudança da primeira para a segunda fase do seu pensamento. Essa idéia foi evoluindo a tal ponto que em seus últimos escritos já admitisse também não mais apenas uma libertação na produção, mas, sobretudo, uma libertação da produção. Isso é significativo para perceber a radicalidade de seu pensamento anticapitalista, antiprodutivo e antieconomicista.

Estou convencido de que esta “revolução” na sua idéia de trabalho é extremamente rica, ousada e provocadora. Ela implica uma mudança de enfoque e de concepção de sociedade que se quer. A distinção que ele faz entre emprego e trabalho é cheia de conseqüências políticas, sociais e pessoais. Gorz sempre a viu também na perspectiva da autonomia dos indivíduos. O trabalho assalariado não é apenas o meio pelo qual o capitalismo se desenvolve, mas, sobretudo uma forma de dominação dos trabalhadores.

Para entender essas reflexão, é preciso ter presente a análise que Gorz faz das conseqüências da revolução da micro-eletrônica, apenas em seus primórdios na década de 1970. Ele não se cansa de acentuar que essa revolução faculta que o capital possa produz mais, com menos trabalhadores e em menos tempo, elevando, assim, fenomenalmente a produtividade. E isso é novo, diz ele, em relação à outra revolução industrial. Uma das conseqüências é que o trabalho não é mais um direito ao qual todos teriam acesso, mas transmuta-se em “privilégio” para poucos. E cada trabalhador precisa “produzir-se” a si mesmo para manter-se competitivo neste mercado de trabalho.

Nestas condições, raciocina Gorz, as formas atuais de organização e concepção de trabalho se esgotaram. E não que lamente isso, pelo contrário. Em determinado momento, diz que é preciso “ousar o êxodo” do trabalho assalariado, ou seja, não se pode olhar para trás e sonhar com o tempo que não volta mais, mas é mais arrojado tentar centrar a atenção em possíveis brechas que a crise do trabalho assalariado possibilita para uma nova organização do trabalho.

Valeria perguntar se a publicação de O imaterial, em 2003, em que Gorz entra na problemática da imaterialidade – do capital e do trabalho – e se debruça também sobre uma análise crítica dos conceitos da economia política, tais como valor e capital, não seria a passagem para uma terceira fase em seu pensamento. Ainda que se perceba a introdução de novos enfoques em sua reflexão, acredito, contudo, que se situam na linha das análises críticas que vem realizando nas últimas duas décadas e meia.

IHU On-Line – Como ele nos ajuda a pensar as transformações no mundo do trabalho? Esse é o seu principal legado?
André Langer –
É impressionante perceber que toda a reflexão de Gorz, por mais teórica que às vezes possa parecer, sempre se guiou no sentido de ajudar a esquerda – européia, sobretudo – a pensar as bases para um novo socialismo, não mais centrado nas condições impostas pelo capitalismo. Mas sempre foi preterido pela esquerda exatamente por suas idéias muito radicais, com exceções, evidentemente. Para ele, um dos objetivos do socialismo é impor limites à racionalidade econômica.

O triplo legado

Penso que se pode pensar num triplo legado de Gorz: suas reflexões sobre a ecologia, o trabalho e a renda social garantida. As reflexões de Gorz sobre a ecologia política foram inovadoras na França. Quando ainda não se discutia esse tema, ele o começa a fazer. Vale destacar que Gorz foi um dos primeiros a criticar a civilização do automóvel. Hoje, esses temas são corriqueiros, mas vale enfatizar sua reflexão pioneira, ainda mais vinda de alguém que se dizia de esquerda. É preciso entender o alcance dessa discussão, pois Gorz não alimentava, ao tratar deste tema, um sentimento bucólico, nostálgico, mas entendia a ecologia política como crítica do capitalismo como produtivismo. Sempre associou essa reflexão à impossibilidade de se seguir indefinidamente o modo de produção e de consumo propostos.

Um segundo legado que Gorz deixa é seguramente a crítica que faz à idéia de trabalho, assim como construída ao longo do capitalismo industrial. Sobre isso já nos referimos acima.

A defesa de uma renda social garantida é um dos vértices da sua discussão sobre o trabalho. As formas tradicionais de distribuição das riquezas, via salário, como remuneração pelo trabalho socialmente útil realizado pelos trabalhadores, caducaram. É preciso inventar novas formas de partilha das riquezas socialmente produzidas. O tema da renda social garantida, ou renda cidadã, é um dos fios condutores que perpassa toda a segunda fase de sua produção.

Ele revê sua concepção para torná-la realmente consonante com sua concepção antieconômica. Diverge, nesse sentido, dos demais pensadores que defendem, como ele, a renda cidadã. Ele concebe a renda social garantida como uma política que possa abrir caminhos para o êxodo da sociedade do trabalho e das mercadorias. Ele vê nela uma maneira não de legitimar o capitalismo, mas, ao contrário, de enfrentá-lo exatamente no plano da produção. Pensa-a na perspectiva de tornar possível o desenvolvimento ilimitado dos indivíduos e não como outra maneira de subjugá-los ainda mais. Nisso, Gorz diverge de outros defensores da renda cidadã, como Antonio Negri, Maurizio Lazzarato, Yann Moulier-Boutang e Giuseppe Cocco, no Brasil, entre outros. Para estes, a renda cidadã seria uma maneira de o capital remunerar aquelas habilidades, conhecimentos, enfim, exterioridades, de que o capital se utiliza para a produção de riquezas, sem no entanto pagar por isso. Na perspectiva de Gorz, isso seria uma ampliação da lógica do capital para espaços ainda livres da lógica economicista. Para Gorz, ao contrário, a renda cidadã deve ser entendida como uma maneira de impor limites ao capital e proporcionar o pleno desenvolvimento das pessoas.
Estou convencido de que esses três núcleos aglutinadores não estão separados e que giram em torno de órbitas teóricas diferentes. Pelo contrário, são, vamos dizê-lo, assim, corpos de uma mesma constelação.

IHU On-Line – Como você teve contato com a obra de Gorz?
André Langer –
Meu contato com a obra de Gorz se deu na preparação ao mestrado, em 1999. Meu orientador, professor Inácio Neutzling, sugeriu-me estudar a definição de trabalho em Gorz. Desafio que aceitei prontamente e com empenho. Comecei a ler material disponível em português, para me familiarizar com o assunto. Confesso que no começo foi tudo muito frio, muito seco, pois suas idéias eram radicalmente contrárias às que alimentava até então. Fiquei assustado, mas aos poucos fui entendendo que trabalhar Gorz exigia uma “revolução” nas minhas idéias e em muitos princípios que tinha. Todo o movimento social e sindical tinha sempre uma outra maneira de olhar para o trabalho. Também na Pastoral Operária, onde militava, isso era verdade. Gorz caminhava na contramão. E está na contramão até hoje em muitas de suas idéias.

Mas havia um segundo limite a superar para entrar no universo de Gorz: a língua. Com exceção de Adeus ao proletariado, todo o resto da sua produção intelectual estava em francês. Digo isso até para ressaltar que hoje, felizmente, grande parte da sua obra já se encontra em português.

Um discípulo de Gorz

Dessa maneira, fui me aproximando do meu mestre e procurando acompanhar sua obra. Lembro que no mestrado, certa vez um professor, sabendo que estudaria Gorz, me disse, franzindo a testa: “Isso pode lhe causar problemas”. Porque significava estudar um autor que ainda estava vivo e no auge de sua produção teórica. Poderia mudar suas idéias, mas também porque ainda não havia uma produção crítica produzida sobre o conjunto de sua obra. Assim mesmo aceitei o desafio, sabendo que não estava sozinho nesta caminhada.

Mas a curiosidade intelectual vai acompanhada da curiosidade por saber quem foi André Gorz. Não o conheci pessoalmente. No ano passado, Gorz publicou, na França, um livrinho dedicado à sua esposa Dorine. O livro chama-se Letrre à D. Histoire d’un amour, isto é, Carta a D. História de um amor. O livro é uma elegia à mulher de sua vida, mas é também autobiográfico. (Uma curiosidade: Gorz dedica quase todos os livros a Dorine, que um dia lhe disse: “Tua vida é escrever. Então escreva”.) Livro pequeno (76 p.), de leitura agradável, revelou-me um Gorz muito apaixonado, carinhoso, terno e afetivo. Na realidade, o livro me surpreendeu, pois sempre o vi escrever sobre temas de relevância teórica, em linguagem sempre filosófica e sociológica.

Cumplicidade

Após saber da morte do casal, reli a Carta. O livrinho, que espero também seja traduzido e publicado no Brasil, revela curiosidades da relação do casal, mas também como certas idéias teóricas encontram seu embrião em acontecimentos da vida pessoal. Refiro-me à relação da ecologia política com a saúde de Dorine. Ainda que a gênese das idéias sobre a ecologia seja anterior, elas ganham um reforço com o estado de saúde de sua esposa. Em uma de suas viagens aos Estados Unidos, os dois ficam muito impressionados com a “civilização americana”, “com seu esbanjamento, as frituras, a Coca-Cola, a brutalidade e as cadências infernais de sua vida urbana”, conta. E em outro momento conta que eles mesmos se impunham limites para a questão do consumo: “Mas nós nunca elevamos o nosso nível de vida e de consumo à altura de nosso poder de compra. Havia entre nós um acordo tácito em relação a este assunto”.

Gorz também conta que os encontros com Ivan Illich  em Cuenavaca, no México, tiveram um peso importante em suas vidas. Uma das questões fundamentais que Illich colocava dizia respeito à “autogestão”, que, para Gorz, confirmava a urgência da “tecno-crítica”. Em 1973, porém, Dorine começa a ter dores de cabeça insuportáveis e inexplicáveis.

O diagnóstico é cruel: ela sofria de aracnoidite, uma doença degenerativa e para a qual não havia nenhum tratamento. Ela se nega a seguir os tratamentos convencionais e a depender deles. “Tu decidiste tomar em tuas mãos teu corpo, tua doença, tua saúde; tomar o poder sobre a tua vida em vez de deixar a tecnociência medicinal” fazê-lo. Dorine decide praticar yoga como forma de se apropriar do seu corpo e controlar as dores. E Gorz conclui dizendo que “tua doença nos levou ao terreno da ecologia e da tecnocrítica”. Mais: “a ecologia tornou-se um modo de vida e uma prática diária constante para implicar a exigência de uma outra civilização”.

A doença e o amor entre os dois os leva a morarem numa casa no interior, onde passaram muitos anos, ocupando-se de si, plantando, recebendo amigos. Ele escrevendo, dando entrevistas. “Tu acabas de fazer 82 anos”, escreveu no ano passado. Ele tinha um ano a mais. “Ainda és bela, graciosa e desejável. Há 58 anos vivemos juntos e te amo como nunca”. Na última página, se pode ler: “Eu não quero assistir à tua cremação; eu não quero receber um frasco com as tuas cinzas. Ouço a voz de Kathleen Ferrier que canta ‘Die Welt ist leer, Ich will nicht leben mehr’ (O mundo está vazio, Eu não quero mais viver) e eu me acordo. Gostaríamos de não ter de sobreviver à morte do outro. Muitas vezes dissemos que se, porventura, tivermos uma segunda vida, gostaríamos de passá-la juntos”.

Alonguei-me de propósito neste tema, pois acredito que estas passagens são, por um lado, reveladoras de um Gorz cheio de paixão e de vida, e, por outro, não são conhecidas do grande público brasileiro. A trajetória intelectual de Gorz deixa transparecer um espírito inquieto, insatisfeito, livre, imprevisível, pois sempre atento às mudanças da realidade. Mesmo morando afastado do centro urbano (tido como sinônimo de acesso à informação, no senso comum), não ter nunca usado a internet, sempre esteve incrivelmente atualizado. Não se instalou em suas idéias tomando-as como escudos, mas soube revê-las, abandoná-las quando necessário. Em tudo foi um grande intelectual. E, por isso, representa uma grande perda.

Fonte: Unisinos



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