Violência em nome de Deus: a negação da negação

Publicado em 17/06/2016 | Categoria: Notícias |


violencia

Por Pe. Rodrigo Ferreira da Costa, SDN*

O escopo de todas as religiões é contribuir para a paz na comunidade humana, uma vez que somos todos ossos dos ossos e carne da carne do outro (cf. Gn 2, 23). Mas se todas as religiões têm como princípio comum a boa convivência entre os seres humanos, como se explica, então, tanta violência, opressão, guerras, preconceitos e discriminações em nome de Deus? Não estariam as religiões negando-se a si mesmas?

A violência em nome de Deus é tão antiga quanto às religiões. As guerras entre as nações não eram apenas lutas pelo poder e riquezas, mas no fundo eram disputas entre os deuses para saber quem era o deus mais poderoso e mais forte. “Quando sairdes para guerrear contra teus inimigos, se vires cavalos e carros e um povo mais numeroso do que tu não fiques com medo […], porque o SENHOR vosso Deus marcha convosco, lutando a vosso favor contra os vossos inimigos, para salvar-vos!” (Dt 19, 1-4). Neste sentido, se o povo vence a guerra, não é pela força de seu exército, e sim, pelo poder de Deus (cf. Ex 17,8-16). Entretanto, para evitar falsas acusações contra Deus perante as derrotas, o autor sagrado vai mostrar ao povo que a derrota na guerra não simboliza a fraqueza de Deus, e, sim, o pecado do povo que não permaneceu fiel à Aliança. “Então os israelitas fizeram o que era mau aos olhos do SENHOR, e serviram aos baais. Deixaram o SENHOR, o Deus de seus pais, que os tinha feito sair da terra do Egito, e seguiram a outros deuses dentre os povos ao seu redor. […] Então a ira do SENHOR se acendeu contra Israel. E os abandonou aos saqueadores que os espoliaram, e os entregou aos inimigos que os cercavam, e não puderam mais oferecer-lhes resistência.” (Jz 2, 11-14).

A violência “sagrada” está intrinsecamente ligada ao fundamentalismo religioso que se caracteriza pelo fechamento de cada religião na própria autossuficiência dogmática, afirmando que vale apenas a sua verdade. Por essa razão os fundamentalistas se recusam a interagir com as outras religiões, não admitindo a parcela de verdade presente nas outras crenças religiosas ou mesmo nas interpretações diferentes dentro da sua própria religião. Por isso é próprio do fundamentalismo a intolerância, o acirramento entre grupos religiosos e a geração de ódio e de violência.

Num tempo de “verdades fracas”, de pluralismo cultural e religioso, de crise do absoluto parece que não há mais espaço para fundamentalismos. Porém o que se assiste é o contrário: grupos radicais tentam impor suas convicções religiosas e doutrinais, pessoas usam o “esconderijo” das redes sociais para expressarem seus preconceitos muito bem justificados numa determinada doutrina religiosa, políticos apresentam projetos que ferem os direitos humanos conquistados com muitos sacrifícios para satisfazerem uma ideologia religiosa, etc. “Para falar a verdade, desde que a escatologia opôs a paz à guerra, a evidência da guerra mantém-se numa civilização essencialmente hipócrita, isto é, ligada ao mesmo tempo ao Verdadeiro e ao Bem, doravante antagonistas. Talvez seja altura de reconhecer na hipocrisia, não apenas um reles defeito contingente do homem, mas a dilaceração profunda de um mundo ligado ao mesmo tempo aos filósofos e aos profetas” (Levinas, Totalidade e Infinito, 1980, p.12).

A violência legitimada pela fé acontece muitas vezes de forma sutil, no silêncio das consciências, obrigando muitas pessoas a viverem uma vida inteira na “clandestinidade”, revestidos com o manto da culpa, do pecado e do medo da condenação dos homens e de Deus. Essa é a pior forma de violência, pois não mata apenas o corpo, mas fere o mais profundo da alma. Neste sentido, mais do que a violência que mata, que faz a guerra, que aparece na mídia; há uma violência velada, silenciosa, que destrói vidas, fere a liberdade, discrimina, oprime, exclui e condena as pessoas sem direito de defesa.  Como escreve Emmanuel Levinas, “a violência não consiste tanto em ferir e em reduzir a nada, ela consiste mais em interromper a continuidade das pessoas, em fazê-las desempenhar papéis nos quais elas não se reconhecem mais, em fazê-las trair, não apenas compromissos, mas sua própria substância, em fazer realizar atos que destruirão toda possibilidade de ato” (Levinas, Totalidade e Infinito, 1980, p. 9).

A violência em nome de Deus é, na verdade, o desvirtuamento da própria religião. Por isso, Jesus de Nazaré chama de “Bem-aventurados os que promovem a paz, porque serão chamados filhos de Deus” (Mt 5,9). Há que se dizer que a religião existe para promover o diálogo e a paz entre os seres humanos, para contribuir na construção de uma humanidade mais humana. No entanto, quando a religião torna-se causa de violência, de guerras, de opressão e de tantas outras formas de mortes, ela está negando-se a si mesma. A violência em nome de Deus é a negação da negação.

Jesus de Nazaré, que chorou sobre a cidade de Jerusalém, porque ela não conheceu a mensagem de paz (Lc 19, 41-42), via no amor aos inimigos (cf. Lc 6, 27) uma forma concreta de romper com o ciclo de vingança e construir relações de proximidade baseadas na gratuidade, no diálogo e na tolerância. Porque, amar os inimigos, fazer o bem aos que nos odeiam, bendizer os que nos amaldiçoam, orar pelos que nos caluniam… são iniciativas necessárias num mundo marcado pela violência, pelo ódio, pela intolerância e pelo medo do outro.

Às religiões cabe, portanto, a missão de serem instrumentos de paz, como rezava Francisco de Assis: “Senhor, fazei-me um instrumento de vossa paz! Onde houver ódio, que eu leve o Amor. Onde houver ofensas, que eu leve o perdão. Onde houver discórdia, que eu leve a união. Onde houver dúvidas, que eu leve a fé. Onde houver erros, que eu leve a verdade. Onde houver desespero, que eu leve esperança.Onde houver tristeza, que eu leve alegria. Onde houver trevas, que eu leve a luz. Ó Mestre, fazei que eu procure mais, consolar, que ser consolado. Compreender, que ser compreendido. Amar,   que ser Amado. Pois é dando, que se recebe. É perdoando, que se é perdoado. E é morrendo que se vive. Para a vida eterna.”

Todos os crentes somos vocacionados à paz. Como nos recorda o Papa Francisco, “matar em nome de Deus é um sacrilégio e discriminar em nome de Deus é desumano”. Por isso, ninguém está autorizado a usar o nome de Deus para atuar violências. 

*Pe. Rodrigo Ferreira da Costa, SDN, é Missionário Sacramentino de Nossa Senhora, Licenciado em Filosofia (ISTA), bacharel em teologia (FAJE), com Especialização para Formadores em Seminários e Casas de Formação (Faculdade Dehoniana). Publicou pela Editora O Lutador (2015) o livro “Equipes Missionárias: rosto de uma Igreja em missão”. Trabalha atualmente na Paróquia Santa Cruz, Alta Floresta-MT.

Fonte: Dom Total



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