De lixo e arte

Publicado em 21/06/2012 | Categoria: Notícias |


Há tempos atrás, o ser humano produzia sobretudo arte. As crianças aprendiam desde cedo a desenhar, ou a tocar piano, ou a pintar, ou a dançar. Tivessem ou não talento. Lembro-me do metrônomo, instrumento de tortura que me acompanhou ao longo de vários anos de estudo de piano. E das aulas de balé, de pintura em porcelana, etc. E o teatro que finalmente conseguiu seduzir-me, nas aulas do Tablado e nos grupos teatrais amadores da Universidade.

Não me dediquei a nenhuma forma artística a não ser ao teatro. Mesmo assim, o estudo em outra área acadêmica, os compromissos docentes e familiares sempre mais exigentes fizeram que esse também fosse deixado para trás. Mas não posso negar que minha estética foi “educada” por esse contato braçal, manual, sensorial com as diferentes formas de arte que minha família e a escola onde estudei teimaram em cultivar durante toda a minha infância e adolescente.

O contato com a beleza forma a sensibilidade para o belo, pensavam meus educadores, todos humanistas inveterados. E assim eu e a minha geração passamos por esse contato direto com a beleza produzida pela inspiração humana a fim de por ela ser marcados por toda a nossa vida. A arte depurou nossa sensibilidade e senso estético, criou em nós um radar interior que passou a detectar onde estavam as criações artísticas de valor e aplaudidas segundo os cânones da beleza.

Hoje há outra produção que infesta o cotidiano do planeta: o lixo. Produzido a partir daquilo que o sistema social capitalista rejeita e descarta, o lixo vai tomando proporções tão gigantescas que se converteu em verdadeiro problema social e político em muitos países. Nos mais opulentos, pode-se encontrar de tudo no lixo, desde sofás e televisores até restos de comida e garrafas inteiras de bebida. De tal modo é assim que há muita gente que vive do lixo, nele catando e descobrindo o que pode ser aproveitado, reciclado, reutilizado, tornando-se fonte de recursos e de vida.

O gênio de um artista, no entanto, foi capaz de reunir duas coisas aparentemente inconciliáveis: lixo e arte. Transformar o lixo em arte, fazer o lixo – lugar da imundície e da feiúra repugnante – tornar-se beleza, e provar que isso é possível, foi a empreitada admiravelmente bem sucedida de Vik Muniz, artista plástico brasileiro de fama internacional. Seu filme “Lixo extraordinário” é todo ele feito de relatos comoventes de um grupo de pessoas que vive do lixo e que faz a empolgante descoberta que pode transformar o que ali vê, encontra e coleta em arte da melhor qualidade.

Vik Muniz é o artista que acompanha o grupo e as pessoas, uma a uma, ajudando-as a voltar a crer em si mesmas, em sua capacidade de beleza, em sua humanidade mais profunda que ressurge atrelada à beleza da arte que os dejetos em meio aos quais vivem e atuam faz eclodir quando transfigurados pela estética que se constitui pelo avesso dos cânones estabelecidos.

Agora, durante a Rio+20, quando a cúpula dos povos estará reunida no Rio de Janeiro, Vik Muniz está de volta com seu talento e seu compromisso em fazer deste mundo um lugar mais habitável. Desta vez sua convocação não é apenas para um pequeno grupo ligado ao trabalho no lixão, mas para toda a sociedade. O projeto “Paisagem” que Vik vai liderar nos próximos dias, é um convite a todos e todas que habitamos na Cidade Maravilhosa ou que por aqui estejamos durante os dias de mobilização da Rio+20 . Trata-se de contribuir com peças descartadas e recicláveis (latas, garrafas plásticas, etc.) para a confecção de um painel imenso que será erigido sobre a baía de Guanabara, recriando-a a partir da recuperação do material reciclável que antes se encontrava condenado a ser atirado em caçambas ou em depósitos de lixo, poluindo o ambiente e perturbando o equilíbrio ecológico.

Na tenda onde será instalado o painel, as pessoas entrarão em grupos de 10 ou 20, levando seu material e colocando-o sobre o painel que irá, assim ganhando forma e reproduzindo a matriz original que é a vista soberana e bela do Rio de Janeiro, a partir de uma fotografia clicada pelo próprio artista a partir do Mirante Dona Marta, em Botafogo.

Ao final, com o painel já pronto, o mesmo será oferecido à contemplação dos visitantes, testemunhando sobre a baía que é o porto de entrada da cidade que a beleza acontece ali onde se decide fazê-la acontecer, gratuita e humildemente, aceitando entrar em um processo coletivo onde todos contribuem e fazem sua parte. Quando isso se dá, o lixo se torna extraordinário, a feiúra refulge em súbita beleza, o rosto escondido pela feiúra e pelo abandono brilha no olhar do Criador que vê que tudo que criou é muito bom.

Autor: Maria Clara Bingemer

Fonte: Amai-vos



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