A VOZ DO PASTOR – AGO 2017

Publicado em 09/08/2017 | Categoria: Notícias |


avozdoPastorÉ BOM ESTARMOS AQUI

Queridos irmãos e queridas irmãs,

Ao comparar dois relatos evangélicos de suma importância, nos damos conta de que em ambos se procede de forma muito parecida: eles nos colocam diante da mesma solene declaração dos Céus. Estes dois relatos são o Batismo e a Transfiguração do Senhor – cuja festa celebramos, agora, em agosto.

No relato do Batismo, ouve-se uma voz que diz: “Tu és meu Filho muito amado, em ti eu pus toda minha complacência”. Esta fala solene se repete em Marcos (1,10), e em Mateus (3,17) e Lucas (3,22).

Na narrativa da Transfiguração, a mesma frase volta. Mas há uma única alteração, única, porém decisiva. Na frase da Transfiguração há um solene imperativo final: escutai-o. “Este é meu Filho muito amado. Escutai-o” (Mc 9,7); “Este é o meu filho muito amado, no qual coloquei todo meu agrado. Escutai-o” (Mt 17,5). “Este é o meu Filho predileto. Escutai-o” (Lc 9,35). A aparição do verbo ESCUTAR, nesse contexto e neste momento preciso, ilumina não só o sentido central do Episódio da Transfiguração, mas faz a própria luz da Transfiguração ser ainda mais radiante.

O Batismo acontece antes de tudo, nos princípios luminosos, sem tardes nem ocasos, com o sol do meio-dia brilhando mais forte que todas as sombras de todas as dúvidas. A Transfiguração, porém, não. O episódio da Transfiguração ocorre numa etapa particularmente sensível do percurso de Jesus com seus discípulos. Naquele momento, os escolhidos do Escolhido já não consideravam que a escolha tinha sido tão assertiva. Eles esperavam mais, eles queriam mais. Quem investiu demais na aposta, agora queria resultados. E não era bem isso que o Mestre propunha.

Quem apostou na busca não pode recusar a travessia.

Os discípulos continuavam a caminhar com Jesus. Mas de certa forma foram ficando para trás dele, em aspectos importantes, atravessados por expectativas desencontradas, por medos e receios, temendo as consequências do seu envolvimento, fugindo dos compromissos que haviam sido leves, lá atrás, olhando os horizontes, lá à frente, e sentindo-se vacilar, recuando na confiança que até então haviam depositado com a facilidade dos inícios – quando tudo é mesmo tão fácil!

O ator coadjuvante da cena é Pedro.

Imediatamente anterior à Transfiguração, ele faz eco à própria voz do Céu, ainda não proferida, e confessa solenemente: “Tu és o Messias, o Filho do Deus vivo” (Mt 16,16). Jesus devolve outra declaração solene. E resolve declarar o que significava, exatamente, e em pormenores, ser aquilo que Pedro havia dito: o Messias e Filho do Deus vivo. Pedro o chama à parte e o repreende: Deus o livrasse disso, que isso nunca lhe acontecesse! O temor se sobrepõe à confiança. No fundo, aquilo que Pedro realmente disse não foi “Senhor, que isso nunca te aconteça”, mas “Senhor, que isso nunca nos aconteça!” Havia medo por Jesus, sim, mas seguramente havia muito mais medo por si mesmo. Não somos tão altruístas quanto vendemos que somos!

Esse é contexto em que o verbo ESCUTAR aparece com tamanha intensidade. A escuta é a única experiência capaz de arrancar do coração dos discípulos o escândalo que os haveria de sequestrar. Não houve e nunca haverá fé que não nasça da escuta, de uma escuta profunda, de uma escuta confiante, de uma escuta até o fim. A escuta é o espaço onde Jesus pode atuar para curar-nos de nosso medo.

Não deixa de ser interessante notar que quando a voz do Céu manda escutar, naquele momento, Jesus não está dizendo nada. É aí que o sentido do ESCUTAR se amplia. Escutar significa acolher Jesus, receber Jesus no que ele realmente é e não em nossas ilusões adocicadas, colocar-se dentro do seu mistério. Não basta conhecer nem saber. É preciso escutar porque a escuta conduz além. Ela torna presente Jesus em todo o seu mistério, seu projeto e seu destino. A escuta desperta e orienta. A escuta nos coloca diante dele e nele. Ela nos dá o sabor da Presença. A escuta cura.

A montanha alta da Transfiguração tem a mesma altura da montanha onde antes o tentador havia se insinuado. Imensamente diferente do que ocorreu naquela ocasião, a voz de Pedro traduz o sentimento do momento: “Senhor, como é bom estarmos aqui!” (Mt 17,4). É então que a nuvem cobre tudo com sua sombra e a voz imperiosa declara que ele deve ser ouvido. Ouvi-lo fará tudo ser bom, inclusive, estar ali.

Curiosamente, a nuvem é luminosa. Curiosamente, ela os cobre com sua sombra. Até a luz precisa ser entendida para ser luz. De certa forma, até a luz precisa ser escutada.

Tempos atrás, a religião ainda oferecia à maioria das pessoas critérios para interpretar a vida e princípios luminosos para dar sentido a ela. Hoje, não são poucos os que prescindem de Deus para enfrentar a sós suas vidas, desejos, medos e expectativas. Não são poucos os que preferem a sombra da nuvem e não a sua luz.

Vivemos imersos numa cultura de “in-transcendência”. Ela nos prende no aqui-e-agora, fazendo-nos viver do imediato, sem abertura alguma ao mistério último da vida. Os dois maiores erros de sempre foram a ignorância e o materialismo. A cultura do divertimento elevou esses erros à enésima potência. Aprendemos muitas coisas, estamos fartos de informação e conhecimento, mas nos falta o principal, a sabedoria, o antídoto da ignorância e do materialismo.

O saldo desse momento é um homem moderno, incapaz de querer, de ser livre, de julgar por si mesmo, de mudar seu modo de vida. Ele se tornou um robô disciplinado que trabalha para ganhar dinheiro e desfrutar férias coletivas. Lê as revistas da moda que todo mundo lê, vê os programas de TV que todo mundo vê, repete automaticamente o que todo mundo crê. Mas há muito deixou de ser ele mesmo. Perdeu a compreensão de si. Perdeu-se.

Este é o meu filho predileto. Escutai-o.

Essa escuta interior nos fará saborear a vida desde suas raízes e jamais surfar superficialmente diante do essencial. Somos pequenos e pobres, sim. Mas imensamente amados e, por que não, imensamente preferidos. Assim como o Filho é. Ele é da mesma carne nossa, não é? Quem sabe nossos destinos também sejam os mesmos! Por que não?

Quem sabe não esteja longe o dia em que repetiremos com Pedro: Como é bom estarmos aqui! Por que não? O vale de lágrimas será transformado em vale de doçura. Por que não? Se escutarmos a voz da nuvem luminosa, as sombras se transformarão em luz. Tudo em nós será luz. E será bom demais estarmos aqui!

Este é o meu filho predileto. Escutai-o.

A escuta nos faz rezar num coração que exprime em palavras o quanto é bom estarmos aqui.

Senhor, com os olhos atentos e o coração alegre,
eis-me aqui no silêncio da Presença.
Minhas palavras são pobres para bendizer o teu nome.
A exemplo do Apóstolo Pedro,
vivemos um momento de Tabor,
na ordenação episcopal de Dom Luiz Ricci.
Ao pronunciar o seu nome
e chamá-lo para o serviço pastoral em nossa Igreja Arquidiocesana,
experimentamos como é bom escutar e responder ao teu chamado.
Tu olhaste para Dom Luiz e o convidaste à alegria,
alegria de uma vida mais forte,
alegria de uma vida que o faz testemunha do Ressuscitado.
Agora, descendo a montanha do Tabor,
renovado pela luz do Ressuscitado,
Dom Luiz é chamado a ser em nosso meio e conosco
a face da consolação e da ternura,
revelando o amor misericordioso de Jesus na escuta atenta à vontade do Pai.
E isso nos faz repetir como Pedro, Senhor, é bom estarmos aqui!
Amém.

 + Dom José Francisco Rezende Dias
Arcebispo Metropolitano de Niterói

Fonte: Arquidiocese de Niterói



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