SÓ UMA COISA LHE FALTA

Publicado em 09/08/2016 | Categoria: Notícias |


Dom-José-A-voz-do-PastorAmados amigos e irmãos todos,

Um antigo ditado hindu diz que “quando o sábio aponta a lua, o louco olha o dedo”. Em nenhum outro lugar do evangelho, esse ditado fala mais alto do que no encontro de Jesus com o homem rico. Sobretudo, na forma como Marcos apresenta sua narrativa (Mc 10, 17s). É possível encontrar nessa perícope de Marcos toda complexidade da experiência cristã e toda singularidade do encontro e do seguimento de Jesus.

Tudo em Marcos é narrado com intensidade. Marcos é o evangelista da urgência. Não é à toa que o rapaz que se aproxima vem correndo. Vem com urgência. Numa leitura mais calma do texto, é possível ver o rapaz chegando, correndo, e se ajoelhando diante de Jesus para retê-lo. Tudo assim mesmo, no modo gerúndio, aquele que indica movimento contínuo, sem parar.

Quem é aquele rapaz?

É um rico, portanto, alguém que não tem problemas materiais. Não é doente, portanto, nada tem que atrapalhe sua saúde e de que precise ser curado. Não é um leproso, portanto, nada que impeça sua convivência social. E, além de tudo, ele é bom e cumpre os mandamentos. Nada na sua consciência o acusa.

No entanto…

No entanto, ele chega correndo. A mesma força que o impele é a mesma que o atravanca. Curiosamente, ao declinar os mandamentos, Jesus apenas menciona aqueles que dizem respeito ao dano que se possa causar às pessoas: não matar, não roubar, não emitir falso testemunho, honrar pai e mãe. Mas o homem responde que cumpre isso tudo desde a juventude. “Uma coisa lhe falta”, diz Jesus: VAI, VENDE, DOA E VEM. Aí é que se encontra o que não foi formulado na primeira listagem dos mandamentos. Na lista mencionada por Jesus só se encontravam os mandamentos das relações humanas, os mandamentos horizontais. Nada foi dito sobre os primeiros mandamentos – os mandamentos verticais – nada sobre aqueles que ligam a inconstância humana à constância de Deus.

Quando Jesus olha para ele e o ama, a relação sai da realidade meramente humana – como se já não fosse muito – cruza a linha da horizontalidade e desemboca na verticalidade. VEM, SEGUE-ME. Fica comigo. Durma onde eu dormir. Coma do que eu comer. Viva a minha vida como alguém apaixonado quer viver a vida ao lado do amado. E qualquer coisa que te atrapalhar, tudo que cruzar seu caminho, joga fora: é lixo! Sou eu que importa a ti, diz Jesus. Foi a mim que vieste, correndo, com urgências de vida.

É aí que o ditado hindu mostra sua face mais luminosa e mais cruel. Quando o sábio aponta a lua, o louco olha o dedo.

Uma coisa te falta.

Quando Jesus apontou para si mesmo, o homem olhou para o lado. Ao homem rico faltava desvencilhar-se. A Jesus faltava que ele o seguisse.

É nessa diferença que reside a salvação. Quando a salvação não acontece, não é porque não somos capazes de querer Deus, mas porque não somos capazes de perceber o quanto Deus nos quer. A salvação não acontece, sim, muitas vezes. Mas não é quando nos falta Deus, é quando nós faltamos para Deus. Ao contrário do senso comum que se medita esse texto, no centro do relato não estava uma posse, estava uma falta. É ao redor da falta que o homem se constitui. O homem rico, talvez por ser rico, não soube perceber o que lhe faltava.

Fica mais fácil perceber o começo a partir do final. É para ficar com Jesus que o rapaz tem de vender tudo. Não o contrário! Visto desse ângulo, não há nenhuma imensa perda, só há um incontável ganho. O problema do homem rico foi ter olhado na direção errada. Não há como acertar o alvo quando se mira ao léu. Aquele homem rico era míope da alma: ele não conseguia enxergar além.

Quando o sábio aponta a lua, o louco olha o dedo.

Curiosamente, Jesus olhou para ele e o amou. Sim. Apesar de tudo que possam dizer, Jesus não apostou no cavalo errado. Olhou para ele e o amou. Quando ele chora por Lázaro morto, são os outros que apontam como ele o amava. Aqui, o próprio Jesus não deixa dúvida: ele amou aquele homem rico, não porque ele fosse rico nem porque fosse humano, mas porque ele, Jesus, ele era humano.

O homem sai triste. É o mínimo que ele pode sair. Jesus o convidou a orientar sua vida a partir de uma lógica nova. VAI, VENDE, DOA E VEM. É como se tivesse dito: Só uma coisa te falta. Livra-te do peso para andares comigo. Um olhar retrospectivo autoriza a pensar que talvez o homem rico tivesse considerado o peso de suas riquezas mais leve que Jesus. Não é assim que acontece sempre?

“Venham a mim todos os que andam cansados e encurvados pelo peso do fardo, e eu lhes darei descanso. Carreguem minha carga e aprendam de mim, porque sou manso e humilde de coração, e encontrarão descanso para suas vidas. Pois minha carga é suave e meu fardo é leve” (Mt 11,28).

Foi isso que o homem em tanta coisa rico não pode perceber. Pobre homem rico! Esteve à beira da fonte e, ao que tudo indica, morreu de sede.

Nesse momento, volto meu pensamento para todos os meus colegas de seminário, todos aqueles que passaram pela minha vida, que encontraram abertas as portas do ideal, todos e todas com quem minha vida sacerdotal se cruzou em inúmeros atendimentos, conversas, conferências…

Muita gente ficou. Muita gente se foi. Muita gente se perdeu quando ficou, se encontrou quando se foi. E vice-versa. Os mistérios de Deus são insondáveis.

Quando me pergunto por que, encontro o mesmo olhar de Jesus vendo o homem que ele amou desaparecer na poeira da estrada. Vejo um amor que não conseguiu nem ser amado nem ser entendido sequer ser aceito. Referindo-se ao amor humano, alguém disse que amar é dar do que não se tem a quem não o quer. No caso de Jesus, ele deu do que tinha. O homem rico só não aceitou porque achou que também tinha e não precisava.

Os mistérios de Deus são insondáveis.

Neste mês vocacional queremos ficar frente-a-frente com Jesus e seu olhar de amor. Perguntaremos a ele o que temos de fazer para herdar a vida eterna. E quando ele começar a discorrer sobre os mandamentos sabidos e decorados, tomaremos a palavra e, numa suprema ousadia, lhe diremos que isso já sabemos. Ele sabe que saber, às vezes, não significa muita coisa.

Então, pediremos a ele: Senhor, fale de você e de mim?

E ele nos dirá a mesma coisa que já disse tantas vezes: VAI, VENDE, DOA E VEM.

Dessa vez, nós não lhe viraremos as costas. Nenhuma estrada poeirenta será mais sedutora que o seu amor. Nenhum tesouro mais precioso do que o seu olhar.

Dessa vez, dado que nem temos grandes coisas, já ficaremos. O VEM será ouvido antes do VAI.

Dessa vez, ficaremos com ele, como ele sempre supôs que acontecesse. E quando ficarmos, ah, não perderemos a chance de lhe dizer que ficamos por nós e por todos os que não ficaram, por todos os que não ouviram, por todos os que não amaram.

Sublime revanche!

Amém.

+ Dom José Francisco Rezende Dias
Arcebispo Metropolitano de Niterói

Fonte: Arquidiocese de Niterói



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