A Voz do Pastor – out/2017

Publicado em 02/10/2017 | Categoria: A Voz do Pastor Notícias |


avozdoPastorViva a mãe de Deus e nossa

 

Ó Maria Santíssima, que em vossa querida imagem de Aparecida
espalhais inúmeros benefícios sobre todo o Brasil.

Foi impossível reter a emoção diante do desfile de uma escola-de-samba homenageando os 300 anos da Aparição da Senhora da Conceição Aparecida. Aliás, não deixou de ser interessante que uma escola de samba levasse para a avenida um tema tão exclusivamente religioso. Todo desfile sempre tem uma menção religiosa; afinal, aquilo não deixa de ser um movimento processional. Mas desta vez foi intenso, emocionante e especificamente religioso.

Mas o que leva uma escola de samba a agir assim?

Não há nisso um profundo anseio escondido? Algum sonho perdido, que é sempre recuperado, mas só aos pedaços, na parcialidade que nos é inerente, e não nos deixa perceber tudo o que vai além e que supera a marca opaca da vida?

Eu, cheio do desejo de participar dos benefícios de vossa misericórdia, prostrado a vossos pés, consagro-vos meu entendimento, para que sempre pense no amor que mereceis.

A humanidade sempre esteve e para sempre estará em busca de uma identidade perdida. Todos sabemos disso. A humanidade sempre sonhou com um reino futuro de paz, justiça e harmonia, no qual os mecanismos de ódio, divisão e destruição que a corrompem e envergonham estejam para sempre superados. Todos desejamos isso. Muitas revoluções prometeram isso ao largo da História. Nenhuma alcançou. Todos choramos isso. E a humanidade fez a experiência amarga do fracasso de ter de conviver com a contradição. Mas nem por isso perdeu a esperança de se ver um dia, enfim, reconciliada consigo mesma.

Mas para isso é preciso a utopia. Só a utopia mantém a coluna ereta.

Por isso, Israel viveu a utopia de ser a esposa amada de Deus. E ainda assim adulterou mais do que devia. Mas nunca deixou de sonhar com o dia em que o diadema real fosse colocado em sua fronte, e Deus pudesse lhe dizer: “Tu és toda bela, minha amada, e não há mancha alguma em ti” (Cântico dos Cânticos 4).

Consagro-vos minha língua, para que sempre vos louve e propague vossa devoção.

A fé cristã enxergou em Maria – a Imaculada – a historificação dessa utopia grávida de esperança. Nela a humanidade cristã vislumbrou, enfim, o fim da busca: havia surgido alguém de quem não nos envergonharíamos, porque ela jamais nos envergonharia. Nela, a história se exaure e a humanidade descansa, porque a si mesma se vê, numa representante sua, a plenitude pela qual sempre ansiou, a utopia sonhada e, enfim, realizada.

Ser imaculada significa ser isenta do pecado original.

Pecado original é a situação originária, que gera incapacidade de amar, o fechamento sobre si mesmo, a impossibilidade de haver qualquer relação. Pecado original é o nome que se dá a uma perversão, que brota na raiz da vida e que responde pelas inúmeras desumanidades dentro da história humana, tão repleta de iniquidades. O fato de uns conseguirem gastar 50 mil reais numa diária de hotel nos Alpes Suíços e outros atravessarem o mês com 1 salário mínimo não tem resposta. Nem tente! O fato de uma criança sofrer, não tem resposta. Nem tente! Isso faz parte de um defeito das origens, jamais sanado, sequer explicado.

Todos nascemos dentro da corrupção do mundo e somos, sinistramente, solidários em nossos trágicos destinos e em nossas pífias vitórias. Quando se diz que Maria foi isenta disso tudo, ninguém está dizendo que ela não participou dessa opacidade da existência humana. Embora abençoada pelo Céu, ela é filha da Terra, tudo o que é autenticamente humano se presentificou nela. Mas nela tudo foi diferente.

Consagro-vos meu coração, para que, depois de Deus, vos ame sobre todas as coisas.

Pertence ao estatuto essencial do homem sua fragmentação nos muitos mundos que o habitam, faz parte do ser humano sua dimensão passional que o verga para a terra, com suas pulsões e suas tendências escoando seu desejo ralo abaixo. Só entendam que isso não é, necessariamente, imperfeição, pode também ser riqueza. Mas nela tudo foi diferente.

Aquele homem que abriu os olhos, assustado ao Sopro do Criador, conseguia ser dotado de justiça suficiente para integrar todos os dinamismos díspares dentro de um só projeto, que era tão humano quanto divino, tanto divino quanto humano, e uma coisa por causa da outra. Em nossa obsessão com o pecado original, nós perdemos de vista a inocência original. A paranoia, que em tudo enxerga o demônio, também fecha os olhos para uma Presença Maior.

O homem adoeceu. A Imaculada é a saudade da cura. Nosso modelo é imaculado.

Recebei-me, ó Rainha incomparável, no ditoso número de vossos filhos e filhas. Acolhei-me debaixo de vossa proteção.

Nada supera o sonho que embala o sono da humanidade, para que ela adormeça em paz, enquanto não consegue despertar. Há vários nomes para esse sonho; um deles é fé. E isso não nos diminui, pelo contrário, nos eleva.

É possível entender quem não consiga acreditar. É difícil entender quem perceba esse processo de humanização vertical, e ainda se dê por satisfeito. Só ficar num humanismo horizontal ou numa transcendência horizontal é pouco! É muito pouco!

A religião é o ópio da humanidade? Em muitos casos, sim. Mas se existem tantos outros ópios, por que só à religião cabe o ônus da prova de não ser?

Foi a fé que fez a humanidade acordar e suportar sua própria história. Se até hoje ainda não mostramos o melhor de nós mesmos, pelo menos, apesar de tudo, ainda vergamos, mas nunca nos quebramos. E não foi apenas por nossa esperteza e capacidade de adaptação. Nós não nos quebramos, porque algo nos iluminou e garantiu que valia a pena não quebrar, e continuar, apesar de tudo.

Nosso modelo é imaculado.

Socorrei-me em todas as minhas necessidades espirituais e temporais e, sobretudo, na hora de minha morte.

O paradigma de Maria nos acorda de nosso sono. O fato de ter sido isenta da marca histórica, que desequilibra nossa existência, constitui um privilégio concedido. Mas o que foi verdade uma vez, não poderá ser outra vez, de novo? O que valeu para uma, não valerá para todos?

Há um segredo guardado no coração humano: no fundo, a gente sempre acredita. No fundo, nós sempre cremos. E não cremos apenas na dimensão horizontal da vida; também cremos que é possível se verticalizar. E que verticalizados poderemos mostrar o melhor de nós que anda escondido.

Maria, Imaculada alma humana, é o melhor sonho compartilhado da humanidade. Esse sonho garante que o nosso melhor existe.

Então, não vale a pena sonhar?

Queridos irmãos, e irmãs:

Há 300 anos estamos sonhando um sonho comum.

Há 300 anos, os colonizadores da Terra Brasil caçavam índios nas matas com a mesma diversão dos conquistadores do Oeste Americano. Os índios não eram escravos, foram feitos assim.

Há 300 anos, no triângulo marítimo América-Europa-África, nos porões dos navios negreiros, morria de fome e maus tratos, entre excrementos e vômito, mais da metade dos negros capturados nas matas africanas. Os negros não eram escravos, foram feitos assim.

Há 300 anos, três pescadores, apavorados pela chegada de um conde, desciam o Rio Paraíba do Sul em busca do peixe escasso, que deveria ser servido às toneladas nas mesas dos afortunados. Nem os nobres eram nobres, nem os pobres eram pobres. Foram feitos assim.

Há 300 anos, o Céu desceu à Terra e mergulhou nas águas. E do fundo do lodo dos rios, uma pequena imagem da Virgem foi retirada de seu batismo. Há 300 anos, essa pequena Imagem Negra tem sido sinal, quase sacramental, de que Deus jamais se esqueceu de seus índios, de seus negros e de seus pobres.

Viva a Mãe de Deus e nossa!

Abençoai-me, ó Mãe Celestial, e com vossa poderosa intercessão, fortalecei-me em minha fraqueza, a fim de que, servindo-vos fielmente nesta vida, possa louvar-vos, amar-vos e dar-vos graças no céu, por toda a eternidade. Assim seja!

+ Dom José Francisco Rezende Dias
Arcebispo Metropolitano de Niterói

Fonte: Arquidiocese de Niterói



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